Tensões geopolíticas e democracia colocada à prova: veja fatos que marcaram a América Latina em 2023

Sputnik

Expectativa de crescimento de apenas 1,7%, dificuldades fiscais e muitas tensões geopolíticas. Para especialistas, o ano de 2023 na América Latina foi conturbado devido a diversos problemas. Um possível retorno da guinada à esquerda ou onda rosa, fenômeno que foi marca dos anos 2000 na região, também ficou em xeque.

Momentos que ficaram perto de uma ruptura diante dos ataques que colocaram à prova as instituições democráticas ao longo de 2023. Mais uma vez, os países da América Latina conviveram com tensões políticas que, por pouco, não desencadearam problemas ainda maiores. É o que avaliou a professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Flavia Loss, ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho.

“Tivemos algumas vitórias significativas de governos progressistas, principalmente no sentido da manutenção da democracia regional, que é sempre uma preocupação. Mas, no geral, o cenário foi muito conturbado com vários problemas”, resume a especialista. A começar pelo Brasil que, após a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), passou a registrar inúmeros protestos que questionavam a derrota de Jair Bolsonaro (PL), o que culminou nos ataques de 8 de janeiro.

Na ocasião, milhares de pessoas invadiram e depredaram a sede dos três Poderes em Brasília — Executivo, Judiciário e Legislativo —, diante da inércia das forças de segurança do Distrito Federal. Os ataques foram considerados um atentado terrorista pela Justiça e muitos apoiadores do ex-presidente até instigavam uma intervenção militar contra o governo Lula. Tudo isso, inclusive, preocupou a comunidade internacional sobre o retorno do petista ao poder.

“Talvez não tenhamos internamente a dimensão do estrago que foi feito em termos de política externa no governo anterior. Quando analisamos a dificuldade que o Lula teve para se colocar, observamos como o país perdeu em termos de imagem nos últimos anos. Mas estamos nos recuperando e é isso que importa”, pontua. Entre os países vizinhos, também ocorreram inúmeros acontecimentos que testaram a democracia e a estabilidade regional.

Panorama internacional

Dificuldade de integração da América Latina: o ano de 2023 termina sem avanços na região

20 de dezembro, 17:07

Qual é a divisão política da América Latina?

Do Equador ao Peru, da Bolívia à Argentina, da Venezuela à Guiana, muitos foram os fatos que marcaram a região. Um dos mais graves aconteceu em agosto, no Equador, quando o então candidato à presidente Fernando Villavicencio foi assassinado durante a campanha eleitoral.

“Foi um episódio terrível que estremeceu a democracia no Equador e também colocou em xeque até mesmo as eleições, mas que terminou com a vitória do Daniel Noboa, candidato da direita clássica. As eleições ocorreram democraticamente, mas o país segue com problemas gravíssimos, como o próprio tráfico de drogas, que agora é operado por cartéis mexicanos”, esclarece a professora da Unifesp.

No Peru — que terminou 2022 com um cenário político caótico após o então presidente Pedro Castillo ser preso após tentar dissolver o Congresso Nacional —, diversas manifestações conduzidas no começo do ano por movimentos indígenas e trabalhadores foram duramente reprimidas pelo governo Dina Boluarte, inclusive com mortes. “Isso sempre é um atraso em termos democráticos. Depois as coisas se estabilizaram no país, mas causou uma fratura na sociedade. Ainda não sabemos como essas questões vão se ajustar nas próximas eleições e qual será o futuro político da Dina”, enfatiza a especialista.

Na vizinha Bolívia, que recentemente teve o nome aprovado para se tornar membro do Mercosul após anos de tratativas, também há problemas: com o país em crise econômica e consequente perda de popularidade, o presidente Luis Arce foi expulso do próprio partido, o Movimento ao Socialismo. “Está em uma situação complicadíssima e ele tem agora um adversário, que é o ex-presidente Evo Morales, que já se colocou como candidato para 2025”, acrescenta.

Panorama internacional

Presidente do Chile recebe projeto da nova Constituição do país e convoca plebiscito

7 de novembro, 13:20

Por que os chilenos rejeitaram a nova Constituição?

Outro país em turbulência recente que culminou na eleição de um dos presidentes mais jovens da história — Gabriel Boric, de 37 anos — e na promessa de aprovar uma nova constituição para o país, que é a mesma desde a ditadura militar, o Chile ainda vive um impasse em relação ao texto.

“Houve toda essa questão com os plebiscitos, que no fim de 2022 [a rejeição do projeto] foi uma derrota para a esquerda. E na segunda rodada, a direita também acabou perdendo. Fica uma situação de empate na mudança constitucional chilena”, analisa Flávia Loss. A rejeição aconteceu justamente por conta do peso político que ambos os lados colocaram em cada texto.

Considerado uma das nações mais estáveis na América Latina, o Uruguai tem gerado preocupações ao Mercosul ao longo de 2023, pontua a especialista. O motivo: pressão pela abertura da política comercial dos países-membros. “Querem firmar acordos individualmente e na última semana o presidente Luis Alberto Lacalle Pou pediu para assinar negociações com a China e ainda não sabemos como o bloco vai administrar essa situação”, conta.

Já no México, o presidente Andrés Manuel López Obrador tem se pautado em fazer do país um grande líder na América Latina, enquanto na política doméstica pode ter dificuldade em eleger um sucessor ou sucessora. “Especialmente para o ano que vem, que terá eleições presidenciais, poderemos ter algumas novidades em termos que vai se refletir também na política externa. Caso aconteça, serão duas candidatas mulheres participando com muita condição de vencer as eleições”, diz.

Panorama internacional

Maduro dialoga com Lula e ONU para manter América Latina e Caribe como uma zona de paz

9 de dezembro, 18:54

Onde fica Essequibo?

Território antes quase sem relevância no debate regional, Essequibo ganhou os holofotes nos últimos meses por conta da disputa entre Venezuela e Guiana.

Historicamente, os dois países disputam a região e a descoberta de grandes reservas de petróleo resgatou o problema. Enquanto um plebiscito convocado pelo governo de Nicolás Maduro reconheceu quase por unanimidade que a região pertence a Caracas, Georgetown passou a permitir incursões militares dos Estados Unidos e até do Reino Unido.

“Isso foi algo que marcou a política da América do Sul neste final de ano. No final das contas, através de uma mediação do Brasil e da CELAC [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos], conseguimos pelo menos atenuar essas tensões momentaneamente, o que eu considero também uma vitória da diplomacia na nossa região”, frisa.

Presidente da Argentina, Javier Milei gesticula antes de acender a menorá (candelabro símbolo do judaísmo) gigante montada para o tradicional Festival das Luzes do Hanukah. Buenos Aires, 12 de dezembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 26.12.2023

Presidente da Argentina, Javier Milei gesticula antes de acender a menorá (candelabro símbolo do judaísmo) gigante montada para o tradicional Festival das Luzes do Hanukah. Buenos Aires, 12 de dezembro de 2023

© AFP 2023 / Juan Mabromata

Quem é o Milei?

O fato mais marcante em toda a região, segundo a professora da Unifesp, foi a eleição de Javier Milei na Argentina, um economista que venceu o pleito com promessas de dolarização no país, redução drástica dos gastos públicos e até ataques a parceiros do Sul Global como China e Brasil. Os primeiros dias de governo já foram marcados por decretos polêmicos.

“Todo mundo questiona como serão as relações exteriores da Argentina e a gente ainda não tem essa resposta. Ele mudou muito o discurso enquanto candidato e agora enquanto presidente eleito, mas está cedo ainda para a gente saber para onde vai a política externa na Argentina. Temos visto alguns acenos aí para o Brasil, para o Mercosul e até para a China, mas agora ele tem problemas muito graves agora internamente”, declara.

Apesar de tantos desafios e instabilidade política, o pesquisador do Núcleo de Estudo das Américas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor do Centro Universitário Gama e Souza, Alberto Dias Mendes, lembra que o momento é de ascensão do Sul Global, do qual a América Latina faz parte, na geopolítica mundial.

“Por muitos anos, foram colocados sempre como países subordinados, mas que, na verdade, são esses países produtores da riqueza mundial. Então, a união desses povos certamente é muito importante para o desenvolvimento mundial, para o desenvolvimento de uma nova forma de humanidade, de um novo modelo civilizacional“, finaliza.

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