Dossiê Vale Tudo JBS /J&F

ambiente estava extremamente tenso e as divergências eram intransponíveis até que se ouviu um brado de guerra:

– A gente então vai para a briga. Vamos à Justiça – decretou o empresário Cláudio Cotrim, presidente da Paper Excellence, a companhia que lutava para concluir a compra da Eldorado Brasil, uma das maiores fabricantes de papel e celulose do país.

– Você começa, eu termino – retrucou Francisco de Assis e Silva, diretor jurídico da J&F, a holding da família Batista, que batalhava para impedir a conclusão do negócio.

Naquele dia de agosto de 2018, estava aberta a maior disputa corporativa em curso no Brasil, que logo chegou aos mais estrelados escritórios de advocacia, mobilizou os tribunais e contaminou os bastidores da política. Um ano antes, o empresário Joesley Batista abrira as portas de sua casa no Jardim Europa, bairro rico de São Paulo, para festejar o negócio com o empresário Jackson Wijaya, o sino-indonésio que concordara em pagar 15 bilhões de reais pela Eldorado. Os dois – e os demais convidados – estavam satisfeitos. Wijaya adquirira a fábrica que desejava, fortalecendo a Paper Excellence e marcando sua entrada no lucrativo mercado brasileiro. Joesley, por seu lado, dera um passo importante no plano de desinvestimento da J&F, que corria o risco de quebrar diante das turbulências financeiras provocadas pelas múltiplas investigações de corrupção que vinha sofrendo.

Assim que o negócio foi fechado, no dia 2 de setembro de 2017, saiu o comunicado conjunto em que a J&F e a Paper Excellence diziam que a transação era uma “satisfação” e atendia os “interesses das partes”. Dois dias depois, na noite de segunda-‐ feira, os dois empresários bilionários – Joesley, da família Batista, dona de um império que emprega 280 mil pessoas e inclui a JBS, a maior processadora de proteína animal do mundo, e Wijaya, neto de Eka Tjipta Wijaya, o fundador do Sinar Mas, um dos grandes conglomerados empresariais do Sudeste Asiático – queriam celebrar e estreitar laços, já que a transação previa que a troca de comando da Eldorado levaria um ano. Acompanhado de Cláudio Cotrim, Wijaya chegou à casa de Joesley por volta das 19

horas. Logo o celular do anfitrião começou a apitar com insistência – e seu mundo começou a desabar.

Em Brasília, diante das câmeras de televisão, o então procurador-geral Rodrigo Janot, quase tremendo de tão sério, anunciou a descoberta de “áudios com conteúdo grave, eu diria, gravíssimo”. Os áudios mostravam que Marcello Miller, um procurador, estava trabalhando em favor dos irmãos Batista, enquanto ainda exercia seu cargo de procurador no Ministério Público Federal. E mostravam que os Batista haviam trapaceado no acordo de colaboração premiada ao ocultar, entre os 1 829 políticos que denunciaram, nomes importantes, como o de Ciro Nogueira, presidente do Progressistas, que recebera 500 mil reais. Em uma conversa gravada, mas desconhecida até então, Joesley discutia com Nogueira os detalhes do pagamento dos 500 mil reais – que, segundo executivos da J&F, acabou se concretizando.

Atordoado com a revelação, Joesley retirou-se da sala de jantar e foi para um cômodo reservado, onde passou a receber informações para entender as implicações daquilo tudo. Enquanto isso, os convidados jantavam com a família Batista, sem a presença do líder do império. O pior desdobramento veio quatro dias depois. O procurador Rodrigo Janot pediu a prisão de Joesley e de um de seus executivos, Ricardo Saud. Pouco depois, Joesley Batista, então com 45 anos, entregou-se à polícia, junto com Saud. Ele fizera tudo para evitar a prisão. Em busca de um acordo de imunidade penal, já tinha até grampeado o então presidente Michel Temer, mas acabou atrás das grades, um dos seus maiores temores. Ficou seis meses preso.

O jantar fora a ave do mau agouro.

Um ano depois daquela noite, o acordo entre a J&F e a Paper Excellence estava indo para o brejo, inaugurando o primeiro capítulo de uma disputa que envolve cifras bilionárias, espionagem cibernética, ameaça de morte, golpes e contragolpes, orgulho, ganância e, nos lances mais recentes, até questões de soberania nacional. Durante cinco meses, a piauí investigou o conflito, cujos desdobramentos mostram que os irmãos Batista, depois do vendaval da corrupção e de três temporadas na prisão, estão de volta à cena do jogo pesado.

Aoperação de compra da Eldorado desdobrava-se em três etapas. Nas duas primeiras, até o fim de 2017, a Paper Excellence pagou 3,6 bilhões de reais por 49,41% das ações da empresa, adquirindo participações que pertenciam à J&F e a outros acionistas. A terceira e última etapa estabelecia que, até 3 de setembro de 2018, os compradores deveriam pagar mais 4,4 bilhões de reais, além de liberar as garantias dadas pelos irmãos Batista das dívidas da Eldorado, que somavam 7 bilhões de reais. As garantias eram ações da JBS, a empresa-símbolo da família. À medida que se aproximava o prazo final, as divergências entre as partes começaram a brotar e foram crescendo cada vez mais.

Na visão da J&F, a Paper Excellence, para liberar as garantias das dívidas, tinha de substituí-las, oferecendo ativos de sua propriedade. A Paper, em vez disso, queria liberar as garantias de outro modo: saldando as dívidas ou injetando na Eldorado valor suficiente para que a própria Eldorado pagasse o que devia. Entre parceiros de boa vontade, o ponto não parece instransponível, considerando que as garantias, de um jeito ou de outro, estariam devidamente liberadas. Mas, naquela reunião no início de agosto, não houve acordo.

No dia 14, com o rompimento entre as partes, a Paper efetivamente entrou na Justiça pedindo adiamento do prazo para a conclusão do negócio e alegou falta de colaboração da J&F. Oito dias depois, uma audiência de conciliação acabou sem acordo. A J&F solicitou então uma reunião entre os acionistas dos dois lados. Agendaram o encontro em Los Angeles, no fim de semana de 25 e 26, pois não havia tempo a perder. Os irmãos Wesley e Joesley Batista foram representados por dois jovens sobrinhos: Aguinaldo Ramos Filho, à época com 25 anos, que presidia a Eldorado, e José Antônio Batista Costa, de 34 anos, então presidente da J&F.

Com oito participantes, a reunião no sábado não avançou. No domingo, os sobrinhos dos Batista sentaram-se com Wijaya, ele também um jovem de 37 anos, que comparecera ao encontro na companhia do seu advogado de confiança, o irlandês Bertie Mehigan, que viera de sua base em Hong Kong. Com a presença apenas dos quatro, a conversa desandou. A certa altura, Aguinaldo Ramos, que assumira o comando da Eldorado apenas em dezembro de 2017, quando a negociação da venda da empresa já havia sido concluída, aceitou adiar o prazo final, exatamente como queria Wijaya, mas apresentou uma condição que espantou seus interlocutores: rever os valores do negócio.

No Brasil, Aguinaldo Ramos havia conversado com alguns bancos de investimentos e saiu convencido de que a Eldorado fora negociada por um valor excessivamente baixo. Nos meses seguintes à venda, alguns fatores contribuíram para valorizar a empresa. Houve uma expressiva alta no preço da celulose, o real se desvalorizou em relação ao dólar e a produção da Eldorado havia aumentado. Na reunião em Los Angeles, ele expôs essa nova realidade, apresentou números e concluiu dizendo que, diante disso, a J&F queria receber 6 bilhões de reais a mais para prorrogar o prazo e fazer os ajustes para concluir a venda.

Wijaya ficou perplexo. O advogado irlandês, em depoimento prestado tempos depois, disse o seguinte: “Ouvimos uma proposta do senhor Aguinaldo Ramos com relação a um new deal, um novo acordo, que envolveria o pagamento do valor adicional de 6 bilhões de reais pelas ações da Eldorado […]. Como podem imaginar, o senhor Wijaya ficou chocado com essa sugestão; ele reiterou, como já fizera no sábado, que não tinha qualquer interesse em uma nova transação, que já tinha os fundos disponíveis para fechar a transação e que estávamos ali para fazer isso.” A reunião de Los Angeles terminou abruptamente.

A animosidade entre as duas empresas então se cristalizou. A Paper Excellence fez seis propostas para fechar o negócio antes do prazo final, todas rejeitadas pela J&F, e depositou 11,6 bilhões de reais em um banco no Brasil para demonstrar que tinha o dinheiro para concluir a transação. Até hoje, os indonésios repetem sua visão de que os irmãos Batista se arrependeram da venda da Eldorado, dada a valorização da empresa, e então começaram a inventar sucessivas exigências para inviabilizar o desfecho do negócio. Os Batista, por seu turno, garantem que cooperaram no que foi possível e tudo se resume ao fato de que a Paper descumpriu o prazo do contrato.

A disputa confronta dois conglomerados habituados a navegar em águas turvas. A J&F já passara por toda sorte de investigações e escândalos, de tal modo que a JBS se tornara uma espécie de sinônimo de corrupção e suborno. Seu acordo de leniência pelas práticas ilegais ultrapassou 10 bilhões de reais. Sete executivos da J&F fizeram acordos de colaboração premiada e assumiram multas que somavam 225 milhões de reais. Joesley foi preso duas vezes. Wesley, seu irmão, passou cinco meses na cadeia sob acusação de traficar informação privilegiada.

De outro lado, o grupo Sinar Mas, ao qual pertence a Paper Excellence, é um grupo poderoso, acostumado a contornar dificuldades na Indonésia e com um histórico de destruidor do meio ambiente mundo afora. Em razão das más práticas florestais, a Asia Pulp & Paper (APP), uma de suas subsidiárias, perdeu o certificado emitido pelo Forest Stewardship Council (FSC), com sede na Alemanha, que atesta o manejo florestal responsável. A própria Paper Excellence vem sofrendo queixas no Canadá, onde hoje é líder em papel e celulose. Ativistas reivindicam que a Paper, em decorrência de seus laços com a APP, também seja subtraída do certificado. No Parlamento canadense, os membros da comissão que trata de recursos naturais tentam, há meses, marcar uma audiência com Jackson Wijaya. O empresário, filho do dono da APP, alega que as empresas são separadas e independentes. (A Paper afirma que “é uma das maiores detentoras de certificados FSC no mundo, com 100% das florestas certificadas”.)

Wijaya é do tipo que gosta de anunciar investimentos bilionários para ganhar influência. Em 2019, durante o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, ele posou para uma fotografia ao lado do então vice-presidente Hamilton Mourão, que estava em visita à Ásia. Na foto, ambos aparecem segurando um enorme cheque de papelão onde se lê “27 bilhões de reais”, a serem destinados à “Eldorado Celulose”. Pouco depois, o deputado Eduardo Bolsonaro visitou Jacarta e fez a mesma foto. Desta vez, o cheque anunciava “31 bilhões de reais” em “investimentos diretos no Brasil” – desde que o caso Eldorado fosse resolvido. Era uma forma pouco sutil de ganhar o apoio do governo. (Outro presidente cortejado pela Paper foi Michel Temer, que, em sua nova fase como advogado, tornou-se consultor da empresa de Wijaya no litígio com a J&F.)

Com o negócio da Eldorado em suspenso, a Paper fez o que previa o contrato no caso de eventuais divergências: recorreu a uma câmara de arbitragem.

Criado no Brasil em 1996, o instituto da arbitragem é um meio de resolver litígios privados fora da Justiça. É uma forma mais discreta, porque quase sempre sigilosa, e mais rápida, já que não passa por múltiplas instâncias. Em geral, quando as partes em conflito concordam em recorrer à arbitragem, cada uma escolhe um árbitro de sua preferência, e esses dois árbitros escolhem um terceiro nome para exercer a função de presidente do tribunal arbitral. As partes podem impugnar os nomes indicados de um

e outro, mas, uma vez aceitos, o processo segue em frente – e, para arrematar, todos concordam que a decisão do tribunal arbitral será definitiva. Ou seja: é para cumprir, sem recorrer à Justiça.

Quando negociaram a Eldorado em 2017, a J&F e a Paper Excellence definiram que qualquer disputa eventual seria resolvida por meio de arbitragem e escolheram que o tribunal arbitral seria a filial brasileira da Câmara de Comércio Internacional (CCI), uma das maiores do mundo, com sede em Paris. Com o litígio estabelecido, a Paper indicou como árbitro o procurador estadual e professor Anderson Schreiber, da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). A J&F designou José Emilio Nunes Pinto, um dos autores da lei brasileira de arbitragem. Os dois escolheram o espanhol Juan Fernández-Armesto, um dos maiores arbitralistas da Europa, para presidir o tribunal. As partes aceitaram os três nomes, e deu-se o início das oitivas, audiências e exame de provas.

No dia 3 de fevereiro de 2021, saiu a sentença: 3 a 0 para os indonésios. Até o árbitro indicado pela J&F votou a favor da Paper Excellence. Os três consideram que os irmãos Batista “obstaram maliciosamente” a concretização do negócio. A arbitragem ordenou que eles cooperassem com os estrangeiros e adotassem “todas as providências necessárias” para fechar a transação. A decisão unânime esmagou as pretensões dos irmãos Batista, mas a derrota poderia ser ainda maior, já que a arbitragem agora entraria na etapa de apurar os danos que a Paper Excellence afirmava ter sofrido diante dos entraves criados pela J&F.

Com receio de uma derrota dupla, os Batista tentaram um acordo. Wesley, o irmão mais ponderado da dupla, pediu uma conversa com Cláudio Cotrim. Numa videoconferência no dia 26 de fevereiro de 2021, com a presença dos respectivos advogados, Wesley declarou: “A gente quer passar a régua.” Explicou que a J&F aceitava concluir o negócio nos termos da sentença da arbitragem, não tentaria anular a decisão e encerraria todas as disputas. Os irmãos Batista, pela primeira vez, estavam oferecendo uma bandeira branca.

A oferta vinha acompanhada de duas condições bastante razoáveis. Os indonésios teriam que desistir de buscar indenização por danos no tribunal arbitral e aceitar uma fórmula de cálculo do preço final da Eldorado, elaborada pela J&F, pela qual abririam mão de

algumas centenas de milhões de reais – nada que fizesse tanta diferença no universo dos negócios bilionários. Cotrim ouviu a proposta e se comprometeu a levá-la ao acionista. Mas nunca trouxe a resposta. “Se ganhamos a arbitragem, por que vamos abrir mão?”, disse-lhe Jackson Wijaya, quando foi apresentado à proposta dos Batista. De acordo com uma fonte familiarizada com a Paper Excellence que pediu para não ser identificada, Wijaya queria dar uma lição nos irmãos Batista. Tudo poderia ter terminado ali, mas, movido por orgulho ou vingança, o indonésio prolongou o litígio.

Depois de três semanas de silêncio do outro lado, a J&F entrou na Justiça, em São Paulo. Como as partes haviam concordado em não contestar judicialmente o conteúdo da sentença arbitral, a J&F começou sua empreitada para anular a arbitragem como um todo. O caso ficou na 2a Vara Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem, em São Paulo. Muito além das alegações de que a Paper não fizera o pagamento dentro do prazo, os Batista aproveitaram o processo para desovar todo um arsenal criminal que vinham montando à sorrelfa, reunindo dados em inquéritos que, havia quase dois anos, estavam sendo abertos, um depois do outro, em São Paulo, Rio de Janeiro e Diadema, na Região Metropolitana de São Paulo.

A essa altura, a J&F estava voltando a respirar. A pior parte do calvário provocado pelas investigações de corrupção, prisões e delações parecia ter ficado para trás. A empresa fizera alguns negócios importantes no seu projeto de descapitalização – vendera suas ações da Vigor Alimentos, empresa centenária do setor de laticínios, e da Alpargatas, gigante do setor de calçados, famosa pelas Havaianas[1] – e finalmente estava entrando num horizonte de estabilidade. Tudo contribuía para que os Batista pudessem voltar a exibir seu poder de fogo. E assim foi.

No dia 27 de maio de 2019, ainda nos primórdios do conflito entre os bilionários, o diretor jurídico da J&F, Francisco de Assis e Silva, disse que conversava com o advogado Ricardo Gardini, quando recebeu um telefonema em seu escritório. Naquela altura, Assis e Silva já provara sua lealdade aos irmãos Batista. Fizera um acordo de colaboração premiada no âmbito da Lava Jato, concordara em pagar 1,5 milhão de reais e continuava no cargo. Era fiel, mas também era ousado, uma característica admirada pelos irmãos. Ao atender o telefone, Assis e Silva diz que ouviu uma voz disparar: ou

ele e os irmãos Batista entregavam o controle da Eldorado para a Paper Excellence ou seriam assassinados.

Assis e Silva afirma que não reconheceu a voz, mas desligou o telefone convencido de que era alguém ligado ao grupo de Wijaya. No mesmo dia, pediu abertura de um inquérito no Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil de São Paulo, por ameaça, extorsão e coação. Sua defesa, feita pelo escritório de Frederick Wassef, então advogado do presidente Jair Bolsonaro, fez um relato forte à polícia. Disse que o advogado recebera “gravíssimas ameaças de morte” e a voz anônima lhe avisara que era amiga do “chinês”. Disse que, além da ligação, o advogado vinha recebendo mensagens intimidadoras por WhatsApp e estava convicto de “tratar-se de uma quadrilha”. A quadrilha, ainda segundo a defesa, vinha extorquindo o advogado e outros executivos da J&F, com o objetivo de gerar uma “bilionária vantagem financeira indevida” à Paper Excellence.

O inquérito avançava a passos lentos até que, em março de 2020, um delegado da Polícia Civil, Ronaldo Sayeg, avocou o caso para si, alegando “razões de interesse público, próprias da investigação ainda em andamento”. Daí em diante, o caso andou com celeridade e só trouxe boas notícias para a J&F. Pouco depois de assumir, o delegado ganhou uma ajuda providencial do advogado Leandro Daiello, o mais longevo diretor da Polícia Federal na era democrática. Aposentado da pf, Daiello trabalhava – e ainda trabalha – no escritório Warde Advogados, de Walfrido Warde, e fora contratado pela J&F para fazer uma investigação paralela sobre o caso.

Daiello fez o que pôde. Chegou a buscar uma testemunha no Espírito Santo para depor na Polícia Civil paulista, com direito a jatinho fretado pela J&F, ida e volta. Solícito, o delegado Sayeg se dispôs a ouvir a testemunha, Bernardino Coelho da Silva, em pleno feriado. Quando encerrou seu trabalho paralelo de investigação, Daiello entregou um alentado relatório sobre o caso nas mãos de Sayeg. Cinco dias depois, o delegado apresentou à Justiça um documento de 45 páginas pedindo prisão temporária de dez pessoas – entre elas, Jackson Wijaya, Cláudio Cotrim e Guilherme Cunha Costa, então diretor de Relações Institucionais da Paper Excellence. Segundo o delegado, eram todos suspeitos de integrar uma “organização criminosa”. (Num desdobramento curioso, Guilherme Cunha Costa, anos depois de ser acusado de criminoso pela J&F, deixou a

Paper e foi trabalhar na J&F. Procurado pela piauí, Costa não quis se manifestar alegando que está distante do caso há muito tempo.)

Na época em que formulou o pedido de prisão, o delegado Sayeg já tinha escolhido o nome para a ação policial que prenderia o pessoal da Paper – Operação Pemerasan, que significa “extorsão”, no idioma indonésio. Tudo parecia caminhar na direção que a J&F desejava. Mas a Operação Pemerasan nunca aconteceu. A juíza Marcia Mayumi Okoda Oshiro, da 2a Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores de São Paulo, concluiu que não havia “fundadas razões” para decretar as prisões. Menos de um mês depois, a J&F enviou ao delegado Sayeg mais dois “relatórios forenses complementares”, ambos assinados por Daiello. Quatro dias após receber o novo material da J&F, Sayeg apresentou outro pedido de prisão à Justiça. A juíza voltou a negar, mas, desta vez, acatou o pedido para prender uma das dez pessoas da lista do delegado.

Encerradas as investigações, o delegado Sayeg concluiu que houve crime, mas não identificou os criminosos. Os promotores Renan Rodrigues e Pedro Alonso apontaram inconsistências e puseram em dúvida a própria existência da ameaça: “A suposta ligação extorsionária recebida por Francisco de Assis e Silva apresenta várias inconsistências, que minam a sua credibilidade.” E lembraram que a “representação criminal megalômana” de Assis e Silva se dava num “contexto de disputa bilionária”, situação que deveria servir de alerta às autoridades para que não fossem “manipuladas” pelas “teses e interesses empresariais” da J&F. Apesar do arquivamento do caso, Sayeg pediu – em vão – para enviar uma cópia do inquérito para uma delegacia em Diadema, onde corria, em paralelo, a investigação mais controvertida da trama: a espionagem cibernética.

As denúncias estavam pipocando. Surgiram inquéritos no Rio e em Brasília. Todos eram provocados por gente ligada ao grupo dos Batista, às vezes diretamente, outras vezes indiretamente. Envolviam personagens diferentes, mas havia um norte comum: as denúncias invariavelmente relatavam crimes cometidos por pessoas ligadas à Paper Excellence ou crimes que beneficiavam a empresa. Foi neste contexto que surgiu o inquérito em que o grupo dos Batista acusava os indonésios de espionagem cibernética. O caso foi aberto no 1o Distrito Policial de Diadema e ficou a cargo do delegado Nelson Caneloi Júnior.

A J&F relatou que e-mails corporativos de suas empresas haviam sido interceptados, sugerindo que a Paper Excellence estava fazendo arapongagem corporativa. A perícia constatou que o monitoramento durou quase um ano, acessou 115 endereços eletrônicos e envolveu 70 mil mensagens de e-mail de executivos da J&F, advogados e outras pessoas envolvidas na venda da Eldorado. Ao longo de três anos, o inquérito reuniu muito material. Laudos periciais, análises de sistemas supostamente invadidos e, principalmente, depoimentos – com idas e vindas, afirmações e contradições.

Uma das testemunhas, Filipe Balestra, especialista em segurança cibernética e dono de uma empresa chamada Pride Security, disse que, em meados de setembro de 2019, uma pessoa chamada Rodrigo Lima lhe dera acesso ao domínio para o qual os e-mails espionados do grupo J&F seriam redirecionados. Disse, ainda, que Lima mencionara nas conversas o nome de uma tal de Moema Ferrari. (Antes de depor na polícia, Balestra deu todas essas informações ao diretor jurídico da JBS.) Pouco depois, Rodrigo Lima faleceu, e Balestra retificou a acusação: a conversa não tinha sido com Lima, mas com Danilo Vaz Bernardi, um profissional da área de segurança da informação que já tinha prestado serviços para a sua empresa, a Pride Security.

O inquérito de Diadema chegou a múltiplas conclusões. Concluiu que duas pessoas, Erik Assunção Figueiredo e Matheus Campos Viana, invadiram o sistema da CTI Net, a empresa que a JBS contratou para hospedar seus e-mails. Concluiu que o especialista em informática Leonardo de Sena, que usava o pseudônimo Slayer, programou a interceptação dos e-mails a pedido de Danilo Vaz Bernardi. Concluiu que Vaz Bernardi criou as contas para onde os e-mails eram redirecionados e forneceu as senhas para Moema Ferrari, que, por sua vez, foi contratada para a empreitada delitiva por executivos da Paper Excellence, de quem recebeu 4,2 milhões de reais ao longo de dois anos.

O delegado Caneloi Júnior concluiu tudo isso, indiciou todos eles, incluindo Cláudio Cotrim, o principal executivo da Paper que, segundo o delegado, era um dos “destinatários finais das informações subtraídas das vítimas (JBS, J&F, Eldorado e dezenas de pessoas físicas)”. O delegado também indiciou Josmar Verillo, um empresário e ativista em organizações de combate à corrupção, que foi contratado como consultor pela Paper Excellence no início da disputa com a J&F. O delegado justificou o indiciamento dizendo que Verillo obtivera uma cópia de um aditivo do acordo de

leniência assinado pela J&F no âmbito das investigações de corrupção, coisa que só seria possível por meio de um hackeamento. (Em depoimento, Verillo disse que recebeu o documento de um jornalista em Brasília. À piauí, disse que tinha orientação de seu advogado para não falar do assunto.)

Com os indiciamentos, o jogo parecia resolvido em favor da J&F, mas as conclusões do delegado não deram em nada. O Ministério Público apontou uma série de problemas na investigação, como a falta de consistência nos depoimentos e ausência de corroboração das acusações. A promotora Andrea Maria Rollo destacou a existência de uma irregularidade de origem: funcionários da J&F estiveram presentes em operações de busca e apreensão em locais que nem pertenciam à J&F e orientaram os policiais sobre a coleta e a preservação de dados. Rollo entendeu que isso maculou o que os especialistas chamam de “cadeia de custódia” – ou seja, o conjunto de ações que garantem a integridade das provas colhidas na investigação. Em outras palavras: prova sob suspeita de manipulação não vale.

O relatório final do Ministério Público foi afirmativo: “O fato é que as investigações levadas a cabo pela autoridade policial não foram capazes de evidenciar todas as circunstâncias dos fatos, ou mesmo caracterizar e comprovar a efetiva ocorrência dos reclamados desvios de e-mails ou a obtenção de comunicação privada pretérita e/ou em tempo real, ou mesmo quem teria participado ou providenciado tal prática.” No dia 31 de outubro de 2022, o Ministério Público pediu o arquivamento do caso de espionagem. No dia 6 de novembro, a juíza Maria da Conceição Pinto Vendeiro homologou o pedido.

Exatamente no mesmo dia em que o Ministério Público pediu o arquivamento do caso de espionagem em Diadema, o advogado Cristiano Zanin Martins, que se tornou conhecido como defensor de Lula, fazia outro movimento em Brasília: entrou com uma ação sigilosa no STF – o mesmo tribunal do qual, mais tarde, se tornaria ministro.

Ao longo de 282 páginas, Zanin, ao lado de outros advogados, pedia a anulação da arbitragem do caso Eldorado porque a espionagem cibernética contra a J&F que fora investigada em Diadema havia violado as comunicações entre advogado e cliente, que

são protegidas por lei. Ou seja: na sua versão, as conversas eletrônicas entre os executivos da J&F e a equipe jurídica, inclusive sobre estratégias de defesa, haviam chegado ao conhecimento da Paper Excellence, numa ilegalidade flagrante. A alegação se mostrou capenga, já que as investigações em Diadema, encerradas três horas antes de Zanin apresentar seu pleito no STF, não haviam sequer comprovado a existência da espionagem. Mas Zanin fazia seu trabalho como advogado de defesa da J&F. Se o STF engolisse a história, tanto melhor para seu cliente.

No curso da ação, Zanin fez um movimento ousado para fortalecer sua tese e obteve excelente resultado: pediu – e levou – o apoio da OAB. Zanin convidou o presidente da entidade, Beto Simonetti, para analisar suas alegações. Cumprindo o dever de quem representa os advogados e defende suas prerrogativas, Simonetti se dispôs a examinar o assunto. E, para alegria de Zanin, concluiu que o caso abordava a “preservação e observância da garantia do sigilo profissional entre cliente e advogado”. O presidente da OAB então decidiu entrar com pedido de admissão como amicus curiae – ou amigo da corte, posição que permite se manifestar ao longo do processo.

A entrada da entidade no caso incomodou os advogados do lado adversário, que não chegaram a ser ouvidos. Afinal de contas, a investigação policial em Diadema não conseguira nem mesmo comprovar a existência do hackeamento e fora arquivada três semanas antes da decisão da OAB. Ainda mais complicado era o fato de que, no curso da investigação, houve falhas na tal “cadeia de custódia”, comprometendo a lisura do processo, um tema sempre caro aos advogados. De onde vinha então a convicção da OAB de que deveria apoiar um caso de violação do sigilo entre advogado e cliente numa situação tão controvertida, quando nem mesmo a espionagem fora comprovada? Consultado pela piauí, Simonetti mandou dizer, por meio da assessoria de imprensa, que “a defesa das prerrogativas é a prioridade da OAB, que atua em favor de todas as advogadas e advogados que formalizam a solicitação de ajuda, não importa quem sejam seus clientes ou os casos em que atuam”.

Sorteado para analisar o caso, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, rejeitou a ação. Os irmãos Batista haviam perdido mais uma batalha, mas não a guerra.

No dia 26 de maio de 2022, por volta das sete da noite, um operador do Disque Denúncia da Polícia Civil do Rio de Janeiro atendeu a um telefonema. Do outro lado da linha, uma voz anônima afirmou que Anderson Schreiber, professor de direito da Uerj que fora escolhido pela Paper como árbitro no caso da Eldorado, costumava receber propina. Como? Vendendo sentenças em tribunais de arbitragem. Sozinho? Não, em sociedade com procuradores do estado do Rio. O que o professor fazia com o dinheiro? Entre outras coisas, comprara um apartamento à beira-mar, em Ipanema. Por quanto? Por 12 milhões de reais.

No dia 7 de junho, menos de duas semanas depois da denúncia anônima, a J&F fez uma representação ao Ministério Público pedindo a abertura de uma investigação em São Paulo. Por coincidência, acusava Schreiber de ter um apartamento caríssimo de frente para o mar de Ipanema, de atuar em parceria com outros advogados para obter vantagens ilícitas em arbitragens coletivas iniciadas por associações de fachada e, por fim, de ser diretamente subordinado à Paper Excellence. Os dois casos – no Rio e em São Paulo – foram para o arquivo. Em São Paulo, diante da falta de indícios ou provas, os promotores escreveram que não haviam conseguido nem mesmo “identificar qual seria a hipótese a ser investigada”. No Rio, o promotor do caso concluiu que “os fatos noticiados são absolutamente falsos”, dado que o imóvel “nunca pertenceu ao advogado”.

Na ação que entrara na 2a Vara Empresarial e de Conflitos de Arbitragem para anular a sentença da arbitragem, a J&F já apontara sua mira contra Anderson Schreiber, o que resultou em sua renúncia ao tribunal arbitral para preservar a integridade do processo. Os advogados dos Batista disseram que Schreiber compartilhara uma sala comercial e um telefone fixo com o escritório Stocche Forbes, de Guilherme Forbes, o advogado que comparecera às reuniões em Los Angeles como defensor da Paper. A ação da J&F também dizia que os dois escritórios haviam trabalhado juntos em algumas ações. Eram, portanto, vizinhos e parceiros. Como Schreiber não havia informado nada disso previamente, a J&F alegava que seu silêncio era a prova de sua parcialidade no tribunal de arbitragem.

Pelas normais legais, os árbitros têm o chamado “dever de revelação”, que os obriga a revelar quaisquer dados – relação profissional, pessoal, interesse financeiro, o que for – que possam gerar dúvidas razoáveis sobre sua imparcialidade ou independência. Ao ser

nomeado, Schreiber revelou que atuava como árbitro em outra arbitragem envolvendo a J&F, mas nada disse sobre o Stocche Forbes.

A J&F disse que não contestara a indicação de Schreiber antes porque não tinha notícia de seus “vínculos de fortíssima intimidade” com advogados da Paper Excellence. Na época, em defesa de Schreiber, integrantes do Stocche Forbes enviaram cartas dizendo que nunca haviam atuado juntos em qualquer caso. (Os dois escritórios atuaram juntos em dois processos, mas Schreiber não participou de nenhum deles.) O advogado Guilherme Forbes afirmou que nem sequer conhecia Schreiber pessoalmente. Além disso, o contrato de vizinhança dos escritórios se encerrara quase três anos antes do início da arbitragem do caso J&F e Paper.

Os outros dois árbitros, José Emilio Nunes Pinto e Juan Fernández-Armesto, também defenderam Schreiber. Em carta, escreveram: “Gostaríamos de observar que, em todo o momento ao longo desta arbitragem, incluindo durante as deliberações do Tribunal Arbitral, a conduta do prof. Anderson Schreiber, no que toca à sua imparcialidade e independência, foi irrepreensível.” Também lembraram que a decisão arbitral fora unânime.

Na sua carta de renúncia ao tribunal arbitral, Schreiber disse que não tinha relação profissional ou pessoal com os integrantes do Stocche Forbes e defendeu que cumprira o dever de revelação nos termos tanto da lei brasileira como das diretrizes da International Bar Association (IBA), uma espécie de OAB global, com sede em Londres. As regras de suspeição e impedimento da IBA – seguidas por algumas câmaras de arbitragem no Brasil – são até mais rigorosas do que as aplicadas aos juízes pelo Código de Processo Civil. (Procurado pela piauí, Schreiber disse que não falaria em razão do dever de confidencialidade dos árbitros.)

Ávida por melar a sentença arbitral, a J&F optou por um movimento mais ousado: questionou a integridade do árbitro que ela própria indicara. José Emilio Nunes Pinto, 75 anos, considerado o papa da arbitragem no Brasil, irritou-se com a acusação e pulou fora. Escreveu numa carta: “Diante de uma informação sobre procedimentos judiciais obtida por internet, J&F e Eldorado apressaram-se em afirmar que eu não gozaria mais de sua confiança, estando afetadas a minha independência e imparcialidade para ser árbitro. Não há espaço para que se discuta (e nem desejo) se a declaração de perda de

confiança teria ou não fundamento. Neste caso, essa é uma questão de foro íntimo de quem alega.”

Nessa altura, a J&F tinha esperança de anular a sentença de arbitragem na 2a Vara Empresarial e de Conflitos de Arbitragem. Apoiava-se no caso Schreiber e no caso da espionagem cibernética (que ainda era investigado em Diadema e só seria arquivado dali a três meses). No dia 29 de julho de 2022, no entanto, as esperanças dos irmãos Batista ruíram. Em uma sentença longa e densa, a juíza Renata Mota Maciel afirmou que não havia provas de que a Paper Excellence promovera a ação de espionagem cibernética. Também decidiu que Schreiber não quebrara o dever de revelação. As informações que ele deixou de antecipar – o compartilhamento dos escritórios e despesas administrativas – não eram suficientemente relevantes para invalidar a sentença arbitral. Por fim, a juíza censurou a J&F por entender que a empresa guardou na manga suas queixas sobre Schreiber e a espionagem, deixando para apresentá-las apenas em caso de derrota no tribunal arbitral como forma de obter uma anulação – tática malvista que o meio jurídico chama de “nulidade de algibeira”.

Os irmãos Batista recorreram ao Tribunal de Justiça, em São Paulo, para anular a sentença da juíza Renata Maciel. O caso deve ser analisado por três desembargadores.

Faltavam três meses para a eleição presidencial. O país estava mesmerizado pela disputa e o risco de um golpe de Estado, mas o deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, ocupou-se de avalizar uma negociação que envolveu líderes de seis partidos. A articulação foi costurada pelo maranhense André Fufuca, do mesmo partido de Lira e atual ministro do Esporte, e resultou na apresentação de um pedido de urgência para aprovação de um novo projeto de lei sobre um assunto ao qual pouca gente estava prestando atenção: a arbitragem. O projeto fazia uma revolução nas regras.

A autora do projeto era a deputada piauiense Margarete Coelho, também do PP e integrante do grupo da estrita confiança de Arthur Lira, que já a escalara para missões sensíveis. Indicara a deputada para a relatoria de dois projetos relevantes – um que protegia os parlamentares de condenação por certos crimes, apelidado de PEC da Impunidade, e outro que reformava o Código Eleitoral. As duas propostas naufragaram,

mas evidenciaram que, quando o assunto é quente, Lira recorria à deputada, que é formada em direito e considerada habilidosa. No projeto, Coelho defendia a necessidade de “aperfeiçoamento da exitosa experiência arbitral” no Brasil. Seu conteúdo, porém, colocava o mundo da arbitragem de cabeça para baixo.

O projeto entrou na pauta ainda antes da decisão da juíza Renata Mota Maciel, de São Paulo, que rejeitou anular a arbitragem a pedido dos irmãos Batista. E entrou a jato, sem passar por uma audiência pública. Se fosse aprovado, transformaria a sentença da juíza em pó. A proposta definia que um árbitro não podia atuar em mais de dez arbitragens – o que ninguém entendeu, dado que um juiz de direito, por exemplo, julga em média 4,5 mil casos por ano – e impedia que os mesmos árbitros atuassem em painéis arbitrais concomitantes. A razão dessa restrição também não era clara, mas o ponto central do projeto era outro: ampliava – e ampliava muito – o dever de revelação.

Na lei atual, feita em conformidade com o modelo da Comissão da ONU para o Direito Comercial Internacional, os árbitros têm a obrigação de revelar fatos que possam gerar “dúvidas justificadas” sobre sua imparcialidade ou independência. No projeto de Coelho, a expressão mudava para “dúvidas mínimas”. Por exemplo: o árbitro Anderson Schreiber, ao ser nomeado para o caso da disputa da Eldorado, não informou que, três anos antes, fora vizinho de outro escritório de advocacia. A informação soa irrelevante, mas, quando se amplia a “dúvida” para o campo do “mínimo”, as coisas mudam de figura.

A comunidade da arbitragem, alertada para a existência do projeto, foi à luta para tentar barrá-lo. O Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr), associação que reúne o maior número de árbitros, advogados e estudiosos do assunto, deu telefonemas, fez reuniões e visitas a Brasília e apresentou notas técnicas. Tentou mostrar que o limite de dez causas por árbitro forçaria uma abertura artificial do mercado, na contramão do que se faz no mundo. E que a adoção de “dúvidas mínimas” não aperfeiçoava nada. Ao contrário, apenas abria a porta para contestações infinitas da parte derrotada num tribunal de arbitragem.

Além do CBAr, outras entidades do setor se manifestaram contra as mudanças do projeto de lei. A Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem Ciesp-Fiesp divulgou nota assinada por seu presidente, Sydney Sanches, ex-ministro do Supremo Tribunal

Federal, refutando as alterações. Os arbitralistas estranharam que a deputada Margarete Coelho, apesar de advogada, não tivesse nenhuma experiência ou envolvimento com o tema da arbitragem. Tentaram marcar uma audiência para expor seus pontos de vista, mas a deputada não recebeu ninguém.

Com o assunto ganhando tração no setor e gerando muita oposição, tornou-se imprudente colocar o projeto em votação às carreiras. Deu-se então o recuo. Em novembro de 2022, o deputado Arthur Lira participou do seminário Como Aperfeiçoar a Arbitragem no Brasil, realizado pelo site Poder360 com apoio da OAB. No evento, Lira anunciou que o projeto estava adiado por tempo indeterminado. “Não haverá açodamento, tumulto”, disse. (A piauí procurou o deputado para perguntar por que havia acelerado a tramitação do projeto, mas o parlamentar não quis dar entrevista.) Margarete Coelho, que não se reelegeu deputada, disse à revista que a ideia do projeto nasceu de “debates sobretudo na advocacia”, negou que tenha havido “aceleração atípica” e afirmou que sempre esteve aberta ao diálogo: “É preciso reconhecer que há diferenças fundamentais entre dialogar para construir e dialogar com a intenção de obstruir. Minha recusa foi sempre em relação a este último.”

O projeto de lei adormeceu, a eleição presidencial passou, Lula venceu, o novo governo tomou posse, os bolsonaristas promoveram a intentona golpista, os presidentes da Câmara e do Senado foram reeleitos para um novo mandato – e, em março de 2023, o Supremo Tribunal Federal ainda se recuperava da depredação golpista quando recebeu uma ação com um linguajar agressivo: o União Brasil pedia a suspensão imediata de todos os processos de arbitragem no país. Todos, não. Apenas aqueles em que havia algum tipo de contestação sobre a questão do dever de revelação. Como no caso da Eldorado.

O União Brasil de Antônio Rueda anda de braços dados com o PP de Arthur Lira. Já pensaram em se fundir, abrigando os 59 deputados do União e os 50 do PP num único partido, para ter a maior bancada da Câmara, com 109 parlamentares. “Na raiz dos partidos, a cepa é a mesma”, já disse Lira. A fusão não aconteceu, mas as duas siglas continuam fazendo tabela. Um dos signatários da ação proposta pelo União Brasil, por exemplo, é o advogado Celso de Barros Correia Neto, diretor-geral da Câmara desde que Lira ascendeu à presidência da Casa.

Na ação, o União Brasil faz uma avaliação devastadora dos árbitros. Diz que formam um country club, onde cevam “relacionamento promíscuo”. São antiéticos (sempre dispostos a decidir segundo os interesses de quem lhes indica) e gananciosos (sempre atrás de “mais arbitragens” para receber “cifras cada vez mais milionárias”), além de omitir dados importantes de suas biografias. Por tudo isso, o União Brasil pede que o STF discipline o dever de revelação de modo a afastar “interpretações inconstitucionais” dos juízes de direito.

Entre exemplos de “interpretações inconstitucionais”, a ação cita a sentença da juíza Renata Mota Maciel, que rejeitou o pedido da J&F para anular a sentença arbitral da venda da Eldorado. E vai ao ponto central: pede que o STF defina em que momento a independência de um árbitro pode ser questionada – se no início, no meio ou mesmo depois de encerrado o processo arbitral, recorrendo, neste caso, à Justiça comum. O União Brasil defende a última hipótese, pois “a falha no dever de revelação é matéria que ofende a ordem pública”. Seus advogados também mostraram um quadro bastante negativo do setor. “A arbitragem está doente no Brasil”, escreveram. “A comunidade empresarial brasileira tem estado bastante cética no tocante à condução dos procedimentos arbitrais, especialmente pela falta de parâmetros concretos sobre o dever de revelação.”

É um retrato parcial. A pesquisa Arbitragem em números, de Selma Lemes, pesquisadora do assunto, mostra um leve crescimento do setor. Em 2021, havia 1 047 processos em curso no país. No ano seguinte, 1 116. Num sinal de que o instituto ganha prestígio, até entidades da administração pública têm recorrido mais à arbitragem: 27 casos em 2021, e 36 no ano seguinte. Outra pesquisa, desta vez realizada pelo CBAr, entidade que representa o setor, mostra que, de todas as sentenças arbitrais, o Judiciário tem anulado apenas 1,5% delas. “Isso significa que só um pequeno percentual dos laudos tem algum vício. Então, o sistema arbitral e o mecanismo de controle previsto na lei estão em funcionamento como esperado”, avalia André Abbud, presidente do CBAr.

Antônio Rueda, do União Brasil, disse à piauí que seu partido propôs a ação ao perceber que alguns ministros e juristas já vinham debatendo o tema. “Hoje, nas grandes discussões de arbitragem, você tem que saber se o árbitro tem ou não o dever de revelação e a boa-fé. Se você pegar o ministro Dias Toffoli, alguns ministros do STF, eles já vêm discutindo esse tema. E o partido se adiantou e trouxe a discussão. Já

trouxemos diversos temas para o STF e esse foi mais um.” Rueda afirmou que nunca debateu a petição do União Brasil com representantes da J&F e negou que o caso da Eldorado tenha sido o motivo da petição. (A piauí perguntou se algum executivo da J&F debateu o projeto com algum parlamentar, mas a holding não respondeu.)

O STF não marcou data do julgamento.

No final de junho passado, aconteceu a décima primeira edição do Fórum Jurídico de Lisboa, o evento organizado anualmente pelo ministro Gilmar Mendes, decano do STF, que costuma reunir alguns dos mais altos integrantes do poder político, jurídico, acadêmico e financeiro. A afluência de autoridades é tal que o evento ganhou o jocoso apelido de Gilmarpalooza. Na edição de junho, houve um debate sobre meios alternativos de resolução de conflitos – a arbitragem era um deles. “Com a ausência do dever de revelação, não há outra hipótese que não anular a arbitragem”, defendeu Marcus Vinicius Furtado Coêlho, que, aos 41 anos, foi o mais jovem advogado a assumir o comando da OAB no Brasil, no biênio 2013-2015.

Influente e bem relacionado, Furtado Coêlho trabalha para a J&F pelo menos desde o início de 2021, quando foi contratado para atuar na ação anulatória do caso da Eldorado no Tribunal de Justiça de São Paulo. (Coube a ele atrair o ex-ministro Ricardo Lewandowski para a cruzada da J&F contra a arbitragem. Apenas dois dias depois de sua aposentadoria no STF, Lewandowski já era anunciado como novo parecerista e consultor da J&F no caso Eldorado. O ex-ministro acabou deixando a função para assumir o Ministério da Justiça no lugar de Flávio Dino.)

Quatro meses depois do Gilmarpalooza, em outubro, o Grupo Esfera organizou seu 1o Fórum Internacional, no Pavillon Vendôme, em Paris. Entre debates sobre transição energética e segurança para o capital estrangeiro, Furtado Coêlho resolveu falar do dever de revelação na arbitragem, tema que nem constava dos assuntos em discussão. “Os árbitros nas arbitragens brasileiras não têm controle ético algum”, disse, numa mesa-redonda com o tema “Reformas em pauta”. Ao concluir, conclamou: “Temos aqui empresas relevantes neste evento. Eu saúdo aqui a Cedro, a JBS, a EMS e tantos outros, que contribuem com o nosso país, que sabem que são fundamentais as arbitragens,

como meio alternativo de resolução de conflitos, mas para que a gente possa salvar a arbitragem, fortalecê-la, é importante esse controle ético.”

Os dois eventos – o de Lisboa e o de Paris – contaram com a presença da família Batista. Em Paris, Wesley aproveitou a ocasião para anunciar o que Furtado Coêlho poderia chamar de mais uma “contribuição com o nosso país”: um plano para investir mais de 20 bilhões de reais na Eldorado. Duas semanas depois, a própria J&F organizou informalmente – tendo o cuidado de não exibir sua marca – uma outra conferência. Dessa vez, em Brasília. Foi o Primeiro Fórum Internacional de Arbitragem, oficialmente organizado pelo Instituto Brasileiro de Direito Legislativo (IBDL), com transmissão pelo site Poder360.

Mais da metade dos participantes estava trabalhando ou já tinha trabalhado para a J&F. Em um dos debates, Furtado Coêlho reafirmou sua posição. “A única certeza que tenho é o cumprimento da lei, no que a lei exige que o Judiciário seja rigoroso na anulação de arbitragens que faltem com o dever de revelação, porque esse é o único controle hoje existente”, afirmou. Os discursos pareciam um jogral, dado o consenso sobre os defeitos da arbitragem, a começar pelo organizador oficial, o ibdl, que entrou no STF

como amicus curiae com o objetivo de apoiar aquela ação proposta pelo União Brasil.

O evento em Brasília terminou como começou: um coro para mudar as regras da arbitragem, sobretudo o dever de revelação. Coube ao presidente do STF, o ministro Luís Roberto Barroso, um entusiasta da arbitragem, uma observação crítica. “É sempre importante ter o cuidado de que interesses contrariados não mudem as regras de instituições que funcionem bem.” Um observador – que falou mediante a condição de não ter sua identidade revelada – criticou a unanimidade dos conferencistas e a intenção de mudar a lei com a seguinte afirmação: “Não dá para tocar fogo no açougue só para assar um bife.”

Com a sucessão de derrotas – na arbitragem, na Justiça paulista, no STF –, os irmãos Batista estavam perdendo terreno e precisavam descobrir uma forma de avançar sua pauta para barrar a venda da Eldorado. As denúncias de extorsão, ameaça de

morte, espionagem, nada disso havia surtido efeito. Até que apareceu uma luz no fim do túnel.

A sede da Eldorado fica em Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul. No município e arredores, a empresa é proprietária de 14,5 mil hectares e arrendatária de 285 mil hectares. E, pela legislação nacional, estrangeiros não podem sair comprando (ou arrendando) vastas extensões de terra no Brasil, a menos que tenham autorização expressa do Congresso ou do Incra, a autarquia federal que cuida das terras rurais. Com base nisso, a J&F esboçou a sua nova frente de batalha, amparada no seguinte raciocínio: como pertence a um grupo da Indonésia, a Paper Excellence deveria ter pedido autorização para comprar a Eldorado – levando seus milhares de hectares – e, como não o fez, o negócio teria então que ser desfeito.

Desde 2015, tramita no STF uma ação que discute se as restrições à compra de terras por estrangeiros, estabelecidas por uma lei de 1971, estão (ou não) em conformidade com a Constituição de 1988. Na disputa com a Paper Excellence, a J&F passou a apoiar a lei de 1971 e defender a tese de que a venda da Eldorado precisa ser anulada em razão da ausência da autorização do Congresso ou do Incra. A Paper, por sua vez, alega que o negócio não deve ser desfeito, pois se trata da compra de uma indústria, e não de terras, das quais pretende se desfazer assim que assumir o controle da Eldorado.

Em março de 2023, a J&F ganhou um aliado nessa nova batalha. A OAB – de novo a OAB – decidiu pedir ao STF para participar na condição de amicus curiae sobre a discussão da lei de 1971. Quando a OAB entrou, o julgamento do mérito fora suspenso porque estava sendo transferido do plenário virtual para o plenário físico. Mesmo assim, demonstrando senso de urgência, Beto Simonetti, o presidente da OAB, pediu à Corte que concedesse uma liminar suspendendo as transações fundiárias. O escopo do pedido era tão amplo que, se atendido, levaria à imediata suspensão inclusive da venda da Eldorado. No dia 10 de abril, com o julgamento do mérito ainda suspenso, Simonetti apresentou uma segunda petição ao STF, reforçando a necessidade de concessão da liminar.

A decisão da OAB de entrar no assunto passou pela análise de uma comissão constitucional do seu Conselho Federal, presidida por Marcus Vinicius Furtado Coêlho, um dos cabeças da equipe jurídica da J&F. A ideia avançou com rapidez dentro da

entidade. Foi formalmente apresentada no dia 1o de março. Doze dias depois, foi aprovada numa reunião plenária do Conselho Federal em Belo Horizonte. No dia 29 de março, estava sendo entregue ao STF. Na sua manifestação de catorze páginas, a OAB disse que fizera uma ampla busca nos tribunais e descobriu que “grande parte das ações encontradas contrariavam a regulamentação das aquisições de imóvel rural por estrangeiros”. Citou quatro ações. Uma delas era a da Eldorado.

A Paper Excellence entendeu que a OAB fora longe demais. Antes, já encampara a ação de Cristiano Zanin sobre sigilo entre advogado e cliente no caso da espionagem, o que favorecia a J&F. Agora, apoiava os irmãos Batista na questão fundiária. Em reação, a Paper entregou ao Supremo um memorial em que chama a entidade de “fantoche” dos Batista, diz que “passou a atuar como alter ego da J&F” e afirma que o objetivo é “criar embaraços para a transferência do controle acionário da Eldorado”.

Simonetti se defende. Em nota da assessoria de imprensa, disse que “Marcus Vinicius Furtado Coêlho não atua perante o STF nesse caso em nome da OAB” e afirmou que a entidade “desconsidera em suas ações o eventual impacto em processos de terceiros”. Disse, ainda, que “a única preocupação da Ordem é cumprir as tarefas que lhe são atribuídas pela Constituição – neste caso, referentes à soberania nacional, à segurança alimentar e à proteção do meio ambiente e das populações rurais”. O relator do caso no STF, ministro André Mendonça, concordou em parte com o pedido da OAB, mas a liminar não foi referendada pelo plenário e perdeu a validade. O julgamento do mérito ainda não aconteceu.

Mas a questão fundiária da lei de 1971, antes adormecida, foi subitamente reavivada e começou a se espalhar pelo interior do país. No dia 18 de maio, Luciano Buligon, ex- prefeito da cidade catarinense de Chapecó, entrou com uma ação popular na Justiça Federal, pedindo a suspensão da venda da Eldorado para a Paper, embora as empresas nem ficassem em Santa Catarina. A fundamentação era rala: ele se baseou numa ata notarial de um advogado que ouvira falar que os indonésios estavam sondando a compra de terras em Santa Catarina. (O ex-prefeito de Chapecó é parceiro político do ex- deputado estadual Gelson Merisio, integrante do Conselho de Administração da JBS.) Nesse contexto, Buligon alegou à Justiça que a venda da Eldorado para uma empresa com capital majoritariamente estrangeiro violava a legislação.

A juíza de Chapecó decidiu que o pedido não deveria sequer ser analisado. Buligon recorreu e ganhou. Em decisão de 3 de julho de 2023, o desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4a Região, que se tornou nacionalmente conhecido ao atender um pedido para soltar Lula da prisão em 2018, acolheu a alegação de Buligon e travou a venda até que a Paper Excellence apresentasse a autorização do Congresso ou do Incra. Era a primeira vitória da J&F em cinco anos de disputa. (Decorridos seis meses de sua decisão, Favreto ainda não colocou o recurso para julgamento colegiado.)

Em Três Lagoas, sede da Eldorado, a tese da J&F também entrara em teste por meio de uma ação da Fetagri, a entidade que representa os trabalhadores rurais e agricultores familiares de Mato Grosso do Sul, que também questionava a venda. A Fetagri contratou o renomado advogado paulista Modesto Carvalhosa, mas, em dado momento, a entidade desistiu do processo. A J&F então propôs que o Ministério Público Federal assumisse a causa. O procurador da República Alexandre Aparizi, de Três Lagoas, respondeu que o MPF não tinha interesse em fazê-lo, pois entendia que a venda da Eldorado “não versa apenas sobre a transferência de propriedade dos imóveis rurais, mas, a priori, do controle acionário”. Neste caso, Aparizi opinou que “nada impede que a empresa estrangeira se comprometa a se desfazer de parte dessas terras”. Era música para os ouvidos da Paper Excellence.

Em mais uma reviravolta, operou-se então uma dança das cadeiras no MPF em Mato Grosso do Sul. O caso trocou de mãos e ganhou um reforço de Brasília. Em Três Lagoas, o assunto ficou a cargo do procurador Marcelo José da Silva. De Brasília, o procurador-geral Augusto Aras, quatro dias antes de deixar seu posto, designou o procurador Michel François Drizul Havrenne para também atuar no caso. Aras tomou sua decisão em conjunto com a subprocuradora-geral Lindôra Araújo, coordenadora da 1a Câmara de Coordenação e Revisão de Terras. Havrenne nunca escondeu que tinha interesse no assunto e defendia a lei de 1971.

“Está tudo errado!”, disse ele à piauí. “O que eles [Paper Excellence] querem? Eles falaram assim: a gente recebe tudo e se compromete a vender as terras em um prazo razoável. Não falam qual prazo, não falam nada. Olha o absurdo, o absurdo! Querem ficar com essa quantidade de terras, que é absurda”, reclamou. E prosseguiu em seguida, distribuindo exageros: “É outro país dentro de Mato Grosso do Sul. Você vai ter que

pegar visto para ir para esse outro canto aí. Porque não é mais Mato Grosso do Sul. A gente vai ter aí uma Indonésia! Com 450 mil hectares!” A extensão é de 285 mil hectares, e não 450 mil. A Justiça ainda não decidiu se o MPF pode ou não voltar atrás em sua desistência e reassumir o caso.

Mas o procurador Marcelo da Silva já voltou atrás. No dia 16 de novembro, ele se reunira com representantes da Paper Excellence e se mostrara aberto a um acordo. Disse que, se a empresa se comprometesse a vender as terras e alterar os contratos de arrendamento para parcerias rurais, os obstáculos poderiam ser removidos e a venda da Eldorado poderia ser finalmente concluída. Depois da reunião, porém, Silva conversou com Havrenne e mudou de opinião. “Ele me explicou e eu fiquei convencido de que ele estava correto”, disse à piauí. “O que eu estava pensando em fazer não ia ter como se tornar efetivo.”

Com o MPF se inclinando a favor de sua tese, a J&F ainda contava com um recente e poderoso aliado. No dia 6 de outubro, o ministro Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação, considerado um porta-voz das posições do governo, tuitou sobre o assunto e defendeu a suspensão do negócio em razão da questão das terras. E completou: “Ninguém pode estar acima da lei da CF [Constituição]. Esta situação atenta contra nossa soberania e essa e outras vendas à revelia da lei devem ser anuladas!!”

Sem alarde, o governo federal já trabalhava no caso. Em 1o de março, o Incra recebeu uma denúncia anônima, apresentada por um “cidadão brasileiro que passou a vida lutando pela reforma agrária e quer ver o Brasil andar para a frente”. Falava do caso da Eldorado, repetia os argumentos apresentados em Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, e terminava assinando com um brado – “Justiça Sempre!”. No dia seguinte, outro anônimo, por meio de um e-mail, tratou de alertar o superintendente regional do Incra em Mato Grosso do Sul a respeito da chegada da denúncia. “Superintendente, ajude com essa denúncia grave no estado. Obrigada”, escreveu. Mobilizado para avaliar o assunto, o Incra deu andamento.

Duas semanas depois, o caso já estava em Brasília. A chefe da Divisão de Fiscalização e de Controle de Aquisições por Estrangeiros considerou os fatos “gravíssimos” e escreveu: “O Incra não pode ficar silente.” Pediu “máxima urgência, com o intuito de evitar que o negócio, se for comprovado, se concretize”. Nos meses seguintes, o Incra

concluiu que a J&F e a Paper não haviam pedido aprovação do negócio fundiário aos órgãos competentes. A transação, então, não podia ser feita, a menos que as duas partes se entendessem em torno do assunto. Depois de anos de briga implacável, era óbvio que essa alternativa não existia. O caso ainda será julgado pela Justiça, mas é uma vitória parcial da J&F.

Em conversa com a piauí, o ministro Paulo Teixeira, do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, contou que esteve com representantes da J&F e da Paper. Saiu com a convicção de que a operação está malparada. “Esse negócio de compra de terras tem um rito. A lei diz que terras no Brasil só podem ser adquiridas por brasileiros. Excepcionalmente, os estrangeiros podem comprar. Mas eles precisam de autorização. Não tendo autorização, eles não podem comprar.” Os indonésios, disse o ministro, lhe disseram que vão se desfazer das terras, mas, para tanto, terão antes que comprá-las, o que Paulo Teixeira diz que viola a lei. A Paper Excellence está tentando a hipótese de um ajuste de contrato, que, na visão do ministro, não seria suficiente para resolver o problema. A empresa também insiste que comprou uma fábrica de celulose, e não terras rurais.

Da cidade de Andradina, no interior de São Paulo, um empresário acompanha toda a saga da Eldorado como quem assiste à reprise de um velho filme. Em 2005, Mário Celso Lopes fundou a Floragua, uma empresa de produção de mudas e reflorestamento. Quatro anos depois, a J&F comprou metade da empresa por 300 milhões de reais. A Floragua passou a chamar-se Eldorado – e começou a implementar um plano para tornar-se uma gigante do mercado de papel e celulose. A oportunidade para a ampliação não demorou a aparecer.

Aproveitando a política do PT de criar os “campões nacionais” à base de farto financiamento público, Joesley bateu na porta do BNDES. Em junho de 2010, já tinha a garantia de um empréstimo de 2,7 bilhões de reais para construir uma das maiores e mais modernas fábricas no mundo, em Três Lagoas, marcando o salto da Eldorado. Na véspera do lançamento da pedra fundamental da nova fábrica, Joesley estava no rancho de Lopes. Os dois saíram para uma caminhada. No trajeto, Joesley fez um cálculo societário que mudaria tudo.

“Ó, nós botamos 300 milhões de reais e somos donos da metade”, começou ele. “Agora, vai entrar esse financiamento de 2 bi e 700. E aí muda a história porque esse dinheiro só saiu por minha causa. Sendo assim, a participação societária sua, de 50%, vai reduzir para 5%”, concluiu, segundo rememorou Lopes em conversa com a piauí. “Então não temos mais como ser sócios dentro desse espírito aí”, retrucou Lopes. “Pode esquecer.”

Diante do desentendimento, Lopes sugeriu vender a Eldorado. Segundo ele, Joesley aceitou a sugestão porque tinha certeza de que não haveria um bom comprador. Só que, pouco depois, Lopes já tinha na mesa uma boa proposta da Suzano, a maior fabricante de celulose de fibra curta do mundo, cuja sede fica em São Paulo. As conversas começaram com 1 bilhão, aumentaram para 1,2 bilhão, mas Joesley criou dificuldades e bloqueou o negócio. Mais tarde, Lopes conversou com o Mondi Group, um gigante da África do Sul, que apresentou uma proposta ainda melhor: pagava 2,5 bilhões aos acionistas e assumia as dívidas da empresa, que batiam em 4,5 bilhões. Segundo Lopes, Joesley mais uma vez sabotou a transação. Ao perceber que nunca conseguiria vender a Eldorado diante da resistência de Joesley, Lopes acabou se desfazendo de sua parte por 300 milhões de dólares ao aceitar uma proposta apresentada por José Batista Sobrinho, o patriarca da família. Perdeu muito dinheiro, saiu contrariado e reserva palavras duras ao seu ex-sócio, a quem chama de “psicopata crônico”. “É o perfil dele mesmo, de macerar, macerar, macerar e macerar até virar pó. Ele não honra nada, faz o que acha que é o melhor para ele, entende?”

Apiauí consultou a direção da J&F e da Paper sobre os diversos pontos mencionados nesta reportagem. As duas empresas enviaram notas extensas, com detalhes de suas versões. A leitura das notas mostra que as posições se mantêm intactas desde que o conflito começou. A Paper Excellence defende a atuação do árbitro Anderson Schreiber, que “nunca foi sócio de nenhum dos advogados da empresa [da própria Paper] e nem atuou em causas conjuntas conforme alegações da J&F”. Por sua vez, a J&F diz que Schreiber “quebrou o dever de revelação […] ao omitir que manteve uma sociedade de fato com o escritório de advocacia que assinou sua indicação para julgar o caso”.

Em relação à espionagem, a Paper diz que o caso “foi considerado pelo Ministério Público como ‘natimorto’ e ‘megalômano’, já que não havia nenhuma prova envolvendo a Paper Excellence” e completa: “Os inquéritos, instrumentalizados por representantes da J&F, foram arquivados pela Justiça de São Paulo […], uma vez que foram identificadas várias irregularidades ao longo da investigação.” A J&F rebate: “Fato é que, segundo laudos periciais e confissões às autoridades policiais, essa arbitragem foi manchada pela espionagem de mais de 70 mil e-mails do grupo J&F, incluindo a íntegra das comunicações trocadas com todos os seus escritórios de advocacia e testemunhas da arbitragem.”

Quanto à questão das terras, a J&F diz que ela própria é ré nas ações referentes ao assunto, junto com a Eldorado e a Paper Excellence, e afirma que “a Paper Excellence teve conhecimento de todos os contratos que demonstravam as áreas próprias e arrendadas pela Eldorado antes da assinatura do contrato, que já superavam os 200 mil hectares na época” e, no entanto, “nunca solicitou autorização prévia para a aquisição […] antes de assinar o contrato de compra da Eldorado”. A Paper rebate: “A Eldorado é proprietária de apenas 5% (14 464 hectares) das terras que utiliza em sua operação – um complexo industrial e o viveiro de mudas da empresa, que ficam numa área urbana, no município de Três Lagoas – não havendo, portanto, nenhum conflito com a legislação de venda de terras rurais para estrangeiros.”

O único ponto em comum entre as duas notas é a certeza da vitória. Diz uma: “A J&F está confiante de que o sistema jurídico brasileiro não chancelará os vícios e crimes cometidos contra ela ao longo desse litígio.” Diz a outra: “A Paper confia que sua posição prevalecerá no Judiciário.”

Em dezembro, a J&F avançou várias casas. Conseguiu desarquivar o inquérito contra Anderson Schreiber, alegando o surgimento de “fatos novos” sobre sua atuação em uma arbitragem da Petrobras. O Ministério Público concordou em reavaliar o caso. Na vitória mais expressiva, a J&F conseguiu suspender a multa de 10,3 bilhões de reais, imposta ao grupo no acordo de leniência selado em 2017. O diretor jurídico Francisco de Assis e Silva alegou que a J&F estava pressionada por um conluio formado por “procuradores e a Transparência Internacional”. O objetivo do conluio, segundo

Assis e Silva, era fechar um acordo de leniência com multa bilionária de modo a “forçar a venda de ativos” por parte da J&F. Diz a ação: “A requerente [refere-se à J&F], por estar à mercê dos abusos da Lava Jato, viu-se forçada a realizar diversos negócios jurídicos, patrimoniais, desvantajosos. A título de exemplo, podem-se citar as vendas da Eldorado, da Vigor e da Alpargatas, que, à época, somavam quantia de aproximadamente 24 bilhões de reais.”

A Vaza Jato, que trouxe à tona os bastidores obscuros da Operação Lava Jato, mostrou que, de fato, o então juiz Sergio Moro trocava mensagens com os procuradores, sobretudo Deltan Dallagnol, sugerindo providências, orientando ações, cobrando agilidade e fornecendo pistas, numa evidência de que a investigação era uma operação orquestrada. Nesse contexto, não é difícil que delatores tenham falado sob pressão, ou que provas tenham sido obtidas de forma irregular, e interesses políticos – e sabe-se lá o que mais – tenham movido os investigadores. A alegação da J&F, no entanto, tem outra gênese.

Assis e Silva diz que a evidência do conluio de que a J&F foi vítima está em um suposto diálogo entre o procurador Anselmo Lopes e o empresário Josmar Verillo, no qual se discute um plano para forçar a venda da Eldorado. O procurador trabalhava na Operação Greenfield, que investigou fraudes em fundos de pensão e envolveu a JBS. Já o empresário, segundo a denúncia de Assis e Silva, era representante da Transparência Internacional (não era) e contratado pela Paper Excellence (só seria um ano depois). Nunca apareceu indício de que esse diálogo exista. Assis e Silva não menciona que, antes de negociar a Eldorado com a Paper, a J&F estava prestes a vender a empresa para a companhia Arauco, do Chile, que ofereceu 13,2 bilhões de reais. Mas, numa demonstração de que não houve pressão para fazer a venda, a J&F deixou vencer o prazo da proposta chilena porque a Paper apareceu com uma oferta maior.

De todo modo, a essência de alegação de Assis e Silva – de que a J&F foi forçada a vender ativos pelos procuradores do MPF – era engenhosa, mas é desmentida pelo próprio Joesley. A piauí teve acesso a um trecho do depoimento que o empresário prestou no caso de arbitragem da Eldorado. Ali, Joesley afirma que a multa bilionária da leniência não foi a razão pela qual o grupo colocou em prática um plano de desinvestimento, vendendo ativos importantes. A seguir, trecho do diálogo entre Joesley e o advogado da Paper Excellence, Marcelo Ferro:

– Senhor Batista, eu estou correto em assumir que esse processo de desinvestimento foi um movimento forçado do senhor em razão da multa imposta ao grupo no acordo de leniência? – pergunta o advogado.

– Não, o senhor está errado – responde Joesley. – Eu estou errado? – insiste o advogado.
– Isso – diz Joesley.
– Perfeito – acata o advogado.

– Está errado no que diz respeito à leniência – esclarece Joesley.

O ministro Dias Toffoli, do STF, no entanto, concordou com a alegação do diretor jurídico da J&F e concedeu uma liminar suspendendo a multa de 10,3 bilhões. Sua decisão, tomada às vésperas do recesso judiciário, chamou a atenção para um dado: a mulher do ministro, Roberta Maria Rangel, é advogada da J&F na causa que discute a arbitragem. Ela atua no Tribunal de Justiça de São Paulo e no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, mas não junto ao STF, onde seu marido trabalha.

Ainda em dezembro, a J&F teve outra excelente notícia. Em uma liminar, também concedida às vésperas do recesso, a ministra Daniela Teixeira, a mais nova integrante do Superior Tribunal de Justiça, mandou desarquivar o inquérito de Diadema, que investigou o caso de espionagem cibernética. Teixeira entendeu que o caso deveria ter sido analisado em Brasília, pois tinha conexões com um inquérito na capital federal. Como o inquérito em Brasília já havia sido arquivado, a decisão da ministra, na prática, ressuscitou dois inquéritos numa tocada só – o de Diadema e o de Brasília.

O mês de janeiro também começou alvissareiro para a J&F. A sentença da juíza Renata Mota Maciel, que derrubou a alegação de espionagem e de parcialidade do árbitro Anderson Schreiber, estava prestes a ser confirmada. Dos três desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo escalados para analisar o caso, dois já haviam decidido contra a J&F. Mantiveram a validade da sentença da juíza Maciel e condenaram os irmãos Batista a pagar 30 milhões de reais por litigência de má-fé. Na véspera da votação do terceiro desembargador, o julgamento foi suspenso por uma decisão do

ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça. O adiamento deu mais tempo para J&F.

Com tudo isso – os casos de Anderson Schreiber e da espionagem reabertos, mais a suspensão da multa bilionária e adiamento do julgamento em São Paulo –, a J&F começou 2024 podendo sonhar, pela primeira vez, com a possibilidade de encerrar o maior conflito societário do país com uma vitória. Os irmãos Batista, definitivamente, estão de volta.

[1] O fundador da piauí, João Moreira Salles, tem participação na Cambuhy Alpa Holding, uma das compradoras do controle acionário da Alpargatas.

error: Content is protected !!