A procuradora-geral da República, Elizeta Ramos, ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), com pedido de liminar, contra o art. 216, § 2º, do Código Penal Militar, inserido pela Lei 14.688, de 20/09/2023, que fixa pena inferior para o crime de injúria racial e homotransfóbica em relação à punição prevista na Lei do Racismo (Lei 7.716, de 05/01/1989). A ação pede ainda que seja determinada a imediata suspensão dos efeitos da norma questionada. A ADI foi encaminhada ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso.
A Lei 14.688/2023 tinha o objetivo de adequar o Código Penal Militar à Constituição, e às disposições do Código Penal e da Lei de Crimes Hediondos, de forma a promover uma atualização da legislação penal militar. Quando o projeto que resultou na lei foi proposto, a injúria racial era tipificada apenas pelo Código Penal, que estabelecia pena de 1 a 3 anos de reclusão – exatamente a mesma previsão existente no então projeto que atualizou o Código Penal Militar.
Durante a tramitação do projeto de lei, no entanto, o Supremo Tribunal Federal equiparou a injuria racial e homotransfóbica ao racismo. Diante disso, o Congresso Nacional editou a Lei 14.532, de 11.01.2023, que tipifica como crime de racismo a injúria racial, com pena aumentada de 1 a 3 anos para 2 a 5 anos de reclusão e multa.
Retrocesso – Com isso, a Lei que atualizou o Código Penal Militar acabou promovendo inconcebível retrocesso na tutela penal de vítimas de crime de racismo, ao prever, para o crime militar de injúria qualificada pela utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem, e orientação sexual a pena de 1 a 3 anos de reclusão. Na prática, houve uma redução da pena no caso de a conduta de injúria racial ou homotransfóbica ser praticada por um militar contra outro, no exercício de suas funções ou em lugar sujeito à administração militar.
Isso porque, desde janeiro deste ano, a injúria racial passou a tipificar crime de racismo com pena aumentada, nos casos resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou procedência nacional, de acordo com a Lei 14.532/23. Essa lei seguiu entendimento do STF, que havia equiparado a injúria racial e homotransfóbica ao racismo. A pena de 1 a 3 anos e multa continuou somente para a injúria relacionada à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência.
“A Lei 14.688/23, no intuito de adequar o Código Penal Militar à legislação penal vigente, promoveu inconcebível retrocesso na tutela penal de vítimas de crime de racismo e/ou resultante de preconceito ou discriminação racial”, destaca a procuradora-geral da República. “A reprovabilidade da conduta de ofender a dignidade humana — que deve ser protegida independentemente de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional ou orientação sexual—, é agravada pela condição de ser praticada por militar contra militar em ambiente castrense regido pela disciplina e hierarquia, e não o contrário”, ressalta Elizeta Ramos.
Na ação, o Ministério Público Federal ainda frisa que admitir a redução do patamar de reprovabilidade da conduta significa evidente transgressão ao estatuto constitucional punitivo do racismo. Elizeta Ramos ressalta também que a norma viola os arts. 3º, IV (objetivo fundamental de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação); 4º, VIII (repúdio ao racismo); e 5º, XLI e XLII (mandamento de criminalização da prática de racismo), todos da Constituição Federal.
Além disso, a ADI destaca que a referida redução de penalidade contraria a Convenção Interamericana contra o Racismo, a qual estabelece o compromisso dos Estados-Partes de prevenir, eliminar, proibir e de punir todos os atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância. “O ordenamento constitucional, portanto, estabelece um verdadeiro estatuto punitivo para esse tipo de crime, não admitindo retrocesso nos patamares já alcançados de proteção e de repressão previstos na legislação”, salienta a procuradora-geral.
Pedidos – A Procuradoria-Geral da República requer que o STF acate o pedido de liminar para suspender a eficácia da norma que reduz a pena para o crime de injúria racial praticado por militar contra outro no exercício de suas funções ou em lugar sujeito à administração militar. Em seguida, que sejam colhidas informações da Presidência da República e do Congresso Nacional e que a Advocacia-Geral da União seja ouvida sobre o assunto. Após essas etapas, a PGR pede prazo para poder se manifestar.
Ao final, Elizeta Ramos quer que o STF julgue procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade das expressões “a raça”, “a cor”, “a etnia”, “a origem” e “a orientação sexual”, contidas no § 2º do art. 216 do Código Penal Militar, de modo que o tipo penal resultante tenha preceito primário idêntico ao inscrito no art. 140, § 3º, do Código Penal e mesma faixa de apenamento.
Caso o STF entenda que a declaração de inconstitucionalidade das expressões acima referidas resultará na criação de tipo penal não previsto e desejado pelo legislador, a PGR requer, subsidiariamente, a declaração de inconstitucionalidade de todo o § 2º do art. 216 do Código Penal Militar, de modo que as condutas nele descritas fiquem abarcadas pelos tipos inscritos no art. 140, § 3º, do Código Penal, e no art. 2-A da Lei do Racismo, com a redação dada pela Lei 14.532/2023.