Conheça o Cognyte: o programa espião que a inteligência brazuca usa pra sapear sua vida

Por Caio de Freitas Paes, da Agência Publica

No último dia 20 de outubro, a operação Última Milha da Polícia Federal (PF) reforçou uma suspeita que há meses circulava nos corredores da política na capital federal: de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) do governo Bolsonaro teria usado contra seus opositores um programa espião capaz de monitorar a localização, em tempo real, de até 10 mil celulares por ano no Brasil e exterior. O caso ficou conhecido pelo nome do programa supostamente usado de forma ilegal, o First Mile – desenvolvido e negociado pela Cognyte, companhia israelense do setor de inteligência.

Ciente de que algo estava prestes a acontecer no caso, a equipe da Agência Pública em Brasília (DF) decidiu mergulhar na história nos últimos meses. Descobrimos, então, que as incógnitas em torno da espionagem estatal vão muito além da Abin. Assim, no mesmo dia da operação da PF, revelamos com exclusividade que Aeronáutica, Exército, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) na gestão do bolsonarista Silvinei Vasques, e governos de pelo menos 9 estados, a maioria do campo da direita bolsonarista, também adquiriram produtos do grupo israelense nos últimos 6 anos.

Até sua primeira venda para o governo federal, em dezembro de 2017, a Cognyte somava R$ 2 milhões em contratos com órgãos públicos brasileiros. Dali em diante, a companhia israelense vendeu o equivalente a pelo menos R$ 57 milhões em ferramentas de espionagem, cujo uso – e controle – seguem completamente desconhecidos da população brasileira até o momento.

A descoberta veio apesar de alguns entes públicos se negarem a dar explicações à Pública. No caso dos militares, por exemplo, nos deparamos com uma negativa insustentável de acesso à informação, já relatada na coluna Entrelinhas do Poder.

Além disso, em dois dos casos identificados há contextos nebulosos por trás dos compradores: as gestões do governador Ronaldo Caiado em Goiás e a do governador Mauro Mendes no Mato Grosso, ambos reeleitos ano passado pelo partido União Brasil.

Apesar de tentativas do governo goiano de esconder informações, descobrimos que a gestão Caiado adquiriu o First Mile em 2021, assinando um contrato que lhe permitia 10 mil buscas por meio do programa num período de dois anos. Chama atenção que o governo de Goiás decretou sigilo sobre a execução do contrato na mesma data em que respondeu ao pedido inicial de informações enviado pela Pública.

Já o governador Mauro Mendes foi tema de uma reportagem da Pública ainda no início de 2023, em que revelamos gravações que o colocam sob suspeita de envolvimento num esquema de arapongagem contra jornalistas e críticos à sua gestão. No mesmo período do caso denunciado pela Pública, seu governo operou um programa da Cognyte chamado GI2-S, capaz de forçar “atividade secreta e uso dissimulado” de qualquer aparelho celular em seu raio de alcance.

As descobertas chamam atenção porque, a um primeiro olhar da imprensa, a operação da Polícia Federal dava a impressão de que somente a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tinha usado o First Mile ou quaisquer outros produtos da Cognyte. Não quer dizer que a Abin não mereça um olhar jornalístico criterioso, afinal, por anos o órgão foi controlado por um dos aliados mais fiéis do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o ex-delegado da PF e atual deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ).

Sob o comando de Ramagem, a Abin fichou líderes caminhoneiros de acordo com seu grau de “ameaça” ao governo Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19, além de ter aumentado significativamente suas compras secretas. Ambos os casos, vale dizer, foram revelados pela equipe da Pública neste ano dentro do especial “Caixa-Preta do governo Bolsonaro”, que investigou documentos sigilosos da gestão passada.

Casos em que o aparato estatal é usado para espionagem, com eventuais abusos e perseguições, estão longe de se esgotar. Considerando apenas o First Mile, uma série de perguntas ainda segue sem resposta: Quem foi alvo de monitoramento e por quê? A quem tais informações foram passadas? Qual foi o papel das empresas de telefonia nesses casos

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