Chile vota hoje aprovação de nova Constituição com texto de direita que servirá de plebiscito sobre governo esquerdista de Gabriel Boric

Iniciadas com a onda de protestos contra o segundo governo direitista de Sebastián Piñera, em outubro de 2019; passando pela eleição, no fim de 2021, do esquerdista Gabriel Boric; e seguida, um ano depois, pela rejeição ao projeto de Constituição com ampla participação de independentes e da esquerda — e na qual os partidos de direita foram uma minoria, o Chile assistiu nos último cinco anos a diversas reviravoltas políticas.

 E terá um novo e importante capítulo neste domingo (17), quando os chilenos irão pela segunda vez às urnas para votar a favor ou contra um novo projeto da Carta Magna, que pretende enterrar a que vigora desde a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), desta vez redigido por uma Convenção Constitucional dominada pela direita e extrema direita.

Por isso, o resultado será crucial para o futuro do governo de Boric. Em 2020, num pleito no qual o voto era facultativo e a participação atingiu apenas 50,95%, 78,28% dos participantes da votação apoiaram a proposta de uma nova Constituição — inicialmente promovida pela esquerda e centro esquerda, e rechaçada pela direita e extrema direita.

Em 4 de setembro do ano passado, no primeiro plebiscito de saída (que define se o projeto é ou não aceito pela sociedade), no entanto, o texto acabou rejeitado nas urnas por 61,89% dos votos.

Boric, à frente de uma coalizão entre socialistas, comunistas e social-democratas, decidiu apoiar uma segunda tentativa, e acabou dando um tiro no pé. Na eleição dos membros da segunda Convenção Constitucional, em maio, os partidos da direita e extrema direita foram os grandes vencedores, e, assim, dominaram as negociações para a elaboração do segundo projeto de Constituição. Uma das figuras fortes do processo que termina hoje — e cujo resultado também terá impacto na disputa entre lideranças de direita que pretendem disputar as presidenciais de 2025 — foi José Antonio Kast, presidente do Partido Republicano, aliado do presidente argentino Javier Milei, do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros integrantes da chamada ultradireita internacional.

Agora, embora as pesquisas indiquem que o novo projeto deve ser novamente derrotado nas ruas, analistas acham difícil prever o resultado.

— Prever o resultado deste novo teste eleitoral para todo o sistema político é muito difícil, porque ninguém sabe como pensam os novos eleitores, chamados por muitos de eleitores misteriosos — diz Marco Moreno, diretor da Escola de Governo da Universidade do Chile. — São eleitores pouco interessados em política, e que, em sua grande maioria, moram em bairros populares. Para eles, todos estes processos não resolvem em nada seus problemas diários.

Marta Lagos, diretora da Latinobarômetro, lembra ainda que “as pesquisas têm errado muito na América Latina”, e acusa a campanha da direita de ser “suja e repleta de fakenews”.

— Este projeto de Constituição é ultraconservador e liberal, desconfia da democracia e dos organismos internacionais. É, praticamente, o programa de governo que Kast apresentou nas presidenciais de 2021 — afirma.

O chefe de Estado não participou da campanha e não revelou qual será seu voto, mas Kast e seus aliados conseguiram transformar o pleito num plebiscito sobre o atual governo. Fontes do Palácio de La Moneda admitiram que se o projeto de nova Constituição, conservador e liberal, for aprovado, o governo de Boric praticamente estará terminado. O presidente deverá dedicar os próximos dois anos a implementar mais de 800 projetos de lei, o que obrigatoriamente paralisará sua própria agenda. Neste cenário hipotético, nunca sairão do papel as iniciativas de reforma tributária, da saúde e da Previdência, entre outras.

Para Boric, que se manteve em silêncio durante toda a campanha, é muito mais conveniente, em todos os sentidos, que a proposta seja derrotada nas urnas. O projeto rechaçado em 2022 consagrava direitos em matéria de acesso igualitário à saúde, educação e habitação; ampliava a autonomia de territórios indígenas — reconhecendo como oficiais, por exemplo, diversas línguas nativas de comunidades espalhadas por todo o país; criava direitos ambientais e transformava o combate às mudanças climáticas num dever constitucional do Estado.

Seu grande erro, apontam analistas, foi ter tentado atender demandas de todos os setores da sociedade, se transformando no que muitos chamaram de uma árvore de Natal, que acabou gerando incertezas e temores.

O primeiro artigo do texto rejeitado no ano passado afirmava que “o Estado reconhece e promove uma sociedade na qual mulheres, homens, diversidades e dissidências sexogenéricas participem em condições de igualdade substantiva, reconhecendo que sua representação efetiva no conjunto do processo democrático é um princípio e condição mínima para o exercício pleno e substantivo da democracia e cidadania”.

O novo texto vai na direção contrária, e defende um modelo de Estado liberal, elimina impostos patrimoniais pagos pelas classes mais altas, promove um sistema educacional, de saúde e de Previdência que prejudica os setores mais humildes, e abre a porta para retrocessos importantes, como a eventual revogação da lei que autoriza o aborto em caso de risco de vida para a mãe, estupro e existência de más formações que inviabilizem a vida do feto. O projeto torna possível que o Tribunal Constitucional chileno anule a lei, aprovada no segundo governo de Michelle Bachelet, em 2017.

A ex-presidente socialista se envolveu na campanha especificamente para alertar sobre um texto que, segundo ela, “usa os mesmos argumentos de sempre da direta contra o aborto”.

— A direita também transformou este plebiscito num plebiscito sobre o aborto — aponta Moreno.

Se a direita e a extrema direita chilena vencerem hoje, conquistas sociais dos últimos anos entrarão em zona de risco, e Boric terá dois anos conturbados pela frente, sem a menor possibilidade de melhorar seu desempenho como presidente.

Paralelamente, lideranças da oposição começarão a disputar um capital político que poderá ser útil nas eleições regionais de 2024 e nas presidenciais do ano seguinte. Mas se o projeto naufragar, como o anterior, Boric ganha um tubo de oxigênio e seus adversários deverão recalcular estratégias para os próximos pleitos. O Chile ficará com a Carta Magna da era Pinochet, o que, para muitos, a esta altura do campeonato, seria o melhor cenário.

Com informações de O Globo.

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