Após 200 anos de Doutrina Monroe, Brasil e América Latina ainda lutam por autonomia, dizem analistas

Estabelecida há 200 anos, a Doutrina Monroe demarcou a América Latina como esfera de influência política e econômica dos Estados Unidos. Hoje, com um mundo cada vez mais multipolar, é possível dizer que esse cenário foi superado?

A América Latina, afirmam analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, tem sido imprescindível para a estratégia de poder de Washington, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA passaram a buscar a posição de nação mais poderosa da Terra. Desde aquela época, boa parte da relação entre o país e o resto do continente tem se baseado em uma antiquada doutrina criada há dois séculos.

Em 1823, os Estados Unidos, sob o governo do presidente James Monroe, estabeleceram uma diretriz de política externa que tinha o intuito declarado de impedir a influência de potências europeias no continente americano. Na prática, foi com base nessa doutrina que, nos séculos XIX e XX, os EUA realizaram uma série de intervenções em outros países da região na tentativa de garantir sua hegemonia.

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Para Williams Gonçalves, professor titular de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ainda hoje, os Estados Unidos precisam do domínio sobre a América Latina, pois essa é a “condição de possibilidade básica para os Estados Unidos serem a potência hegemônica“.

“No entendimento dos estrategistas norte-americanos, especialmente de Nicholas John Spykman [1893–1943], abaixo do Rio Grande, nessa América mestiça católica e subdesenvolvida, não podia surgir nenhuma grande potência”, parafraseia.

“Quer dizer, era inadmissível que na América Latina surgisse um Estado com pretensões de se tornar uma grande potência. Por isso, os Estados Unidos sempre sabotaram todos os processos de desenvolvimento e, principalmente, de integração regional.”

Marcos Cordeiro Pires, professor de relações internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), explica que a região não só é fundamental para a segurança estadunidense, mas também é onde mais se enraizaram os valores, a estrutura política e cultural dos EUA. Hoje, ressalta, a presença chinesa oferece algum contraponto, “mas do ponto de vista político, militar e cultural os Estados Unidos são incontestes na América Latina“.

“Apesar de o ex-secretário de Estado, John Kerry, afirmar em 2013 que a Doutrina Monroe estava superada, ela continua muito ativa hoje em dia.”

Quais países se opõem à hegemonia dos EUA?

Historicamente, a grande opositora ao poderio dos Estados Unidos foi a União Soviética, seguida hoje pela Rússia e pela China, além do Movimento dos Países Não Alinhados, que buscavam uma terceira via de desenvolvimento econômico e independência política.

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No mundo de hoje, no entanto, que se mostra cada vez mais multipolar, há maiores oportunidades de resistência e maior poder de barganha do Sul Global frente à hegemonia estadunidense.

Entre estas, Pires aponta para o BRICS, que “amplia a voz dos países em desenvolvimento” e protagoniza o movimento de desdolarização do comércio. “O comércio baseado em moedas locais é apenas a primeira fase de um processo de longa duração, mas o uso do dólar ainda é muito amplo”, afirma.

“O que merece ser ressaltado é o processo, que aponta para um futuro em que os países do Sul Global terão um protagonismo cada vez maior.”

Os analistas, contudo, ressaltam a existência de nações na América Latina que se opõem à influência norte-americana há décadas, como Cuba, “que resiste a um bloqueio econômico que vai completar 61 anos”, detalha Pires.

“Os Estados Unidos nunca admitiram a possibilidade de que um país em sua periferia possa ser autônomo e altivo, como o é o povo cubano.”

Outros exemplos citados foram Venezuela, Bolívia e Nicarágua, que possuem uma forte tradição anti-norte-americana pelo fato de terem “experimentado todo o peso da preponderância dos Estados Unidos e suas intervenções militares, com atuação da CIA [Agência Central de Inteligência]”, explica Gonçalves.

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“Eles podem até votar juntos em decisões da ONU [Organização das Nações Unidas]”, ressalta Pires, “mas não possuem peso político e militar para se contrapor aos Estados Unidos”.

“Aliás, a maior parte das dificuldades econômicas enfrentadas por eles decorre das pressões e sanções impostas por Washington.”

Qual a posição do Brasil no mundo multipolar?

“Quando falamos em mundo multipolar, estamos levando em conta que deve haver um polo de poder na América do Sul“, analisa Gonçalves. Nesse ponto, o candidato óbvio é o Brasil, “que tem todos os elementos básicos para exercer essa liderança” como uma grande população, unidade territorial, unidade linguística e o maior parque industrial do Hemisfério Sul.

“O Brasil não apenas pode, mas o Brasil tem a obrigação de se afirmar como uma liderança na nossa região.”

Entretanto, afirma o analista, falta ao Brasil um “projeto nacional” para exercer essa liderança regional e de estabelecimento de uma “política de autonomia”, ficando esse objetivo e seus meios dependentes do governo no poder.

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Essa sina, ressalta Gonçalves, não é só do Brasil, mas permeia toda a América Latina, dificultando o estabelecimento de mecanismos de integração e cooperação regional, descritos como “efêmeros e instáveis” pelo pesquisador.

Para manter seu poder sobre a América Latina, aponta Gonçalves, os Estados Unidos se basearam em alianças com as elites locais que, por sua vez, possuem um “deslumbramento” com os EUA, afirma.

“Essa hegemonia foi conquistada a partir da servidão voluntária das oligarquias latino-americanas que, para manter o seu poder e frear todo e qualquer movimento de reforma social, apoiaram-se nos Estados Unidos.”

Por conta disso, em comparação com outras nações latino-americanas, destaca Gonçalves, o Brasil é um dos países que mais adere às posições norte-americanas. “É no Brasil onde há a menor resistência“, disse.

Para os especialistas, o Brasil atualmente possui uma força diplomática muito boa, equilibrando-se entre grande disputas internacionais e “liderando temas que são importantes, como o enfrentamento à mudança climática“, destacou Pires.

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Forças Armadas: um caso de subordinação internacional

Para Gonçalves, o caso mais claro de subordinação brasileira aos EUA está nas Forças Armadas. “Eles ainda veem os russos e os chineses como vermelhos, como comunistas”, aponta. Apesar dos esforços de multipolaridade do atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, as Forças Armadas brasileiras ainda são bastante alinhadas com os EUA e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), destaca o especialista.

“Enquanto o presidente Lula viaja pelo mundo e discursa nos fóruns internacionais mais importantes e assume posições bastante avançadas”, afirma, “os militares brasileiros continuam a fazer compras nos Estados Unidos e a fazer exercícios militares com os Estados Unidos”.

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Na opinião de Gonçalves, esse é o principal obstáculo ao papel de líder regional do Brasil. “Nós não podemos ser um polo de poder com Forças Armadas que não se veem como autônomas, só conseguem se colocar como subordinadas aos Estados Unidos.”

“A condição de polo de poder supõe a independência militar”, afirma o professor.

Com informações da Sputnik

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