O fim das ideologias: Por Claudio Tognolli

Por uma diferença de apenas três votos, a Câmara dos Deputados decidiu contra acelerar o trâmite da derrubada de um decreto que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) editou no primeiro dia do seu atual mandato para restringir o acesso a armas de fogo. 

Dois destes votos vieram do PL, partido de Valdemar Costa Neto e Jair Bolsonaro, um notório armamentista. Com as “traições”, a proposta só deve voltar ao plenário da Casa em 2024, segundo informações da revista Veja

Trata-se de Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP) e João Carlos Bacelar (PL-BA). Eles acabaram se unindo na votação aos rivais do PT e outros governistas. Além disso, faltaram à sessão os parlamentares Capitão Augusto (PL-SP), Fernando Rodolfo (PL-PE), Samuel Viana (PL-MG), Silvio Antonio (PL-MA), Tiririca (PL-SP) e Wellington Roberto (PL-PB). 

Aí você se pergunta: por que o PL se encolhe ao osso face o PT? Muito simples responder com o pensamento de Sérgio Abranches, que criou o termo “presidencialismo de coalizão” — que foi a menina dos olhos de Temer enquanto presidente.

Mas o buraco é mais embaixo.

Há quem diga, nos estudos teóricos, que isso é um sinal dos tempos, já que estaríamos vivendo o fim daquilo de Stendhal chamava de promesse de bonheur (promessa de felicidade) ? e o que estaria acontecendo mesmo seria aquilo previsto por Max Weber como sinnerlust, ou um desencanto geral. E, num processo desses, num mundo cada vez mais caleidoscópico, velhas ideologias, mesmo as sepultadas pela história, estariam servindo de espiráculo para jovens. E que alianças políticas improváveis passem a ser a ordem do dia.

Teóricos dirão: no fim de um mundo bipolar, em que a ideologia muda na rapidez do zapping da televisão, cabeças juveniilistas fariam de seu pensamento uma extensão do controle da televisão ? (lembremos, nesse mundo caleidoscópico, de Íxion, herói tessálio condenado por Júpiter a fazer girar eternamente uma roda ardente à qual estava amarrado). Ideologias perdidas são para o juveniilismo a Fata Morgana da vez ? aquela semivadeante e gasosa miragem que se produz nas costas da Calábria.

B

Fim de ideologia não é novidade. O termo, originalmente, foi criado por Albert Camus. Gerou “n” obras, dos anos 1950 para cá: O Deus que Falhou, de R. H. Crossman (com textos de Koestler, Silone, Gide, entre outros); um punhado de ensaios de Arthur Koestler e Ignazio Silone, o famoso O Ópio dos Intelectuais, de Raymond Aaron e, last but not leastThe End of Ideology on the exhaustion of Political Ideas in the Fifties, de Daniel Bell, lançado em 1960 em primeira edição e agora relançado pela Harvard Uviversity Press. O problema é que, hoje, avançou a interpretação do fim das ideologias, que ora ganha o status de perda de sentido, de irracionalismo, sobre o que há o belíssimo extrato de Sérgio Paulo Rouanet:

“Não podemos falar em clima irracionalista sem falar em atores que o defendam ou em suportes que o sustentem. Um tanto impressionisticamente, diríamos que esses suportes incluem, por exemplo, subculturas jovens, em que o rock funciona como instrumento de sociabilidade intragrupal e de contestação geracional do sistema. Nelas, os estereótipos de uma formação livresca são contrapostos a imagem da educação pela própria vida. Reconstitui-se, espontaneamente, sem que os jovens saibam disso, a polarização clássica entre a vida e a teoria, que floresceu, por exemplo, no Sturm und Drang, no romantismo, no atual movimento ecologista e em outras correntes direta ou indiretamente influenciadas pela máxima de Goethe ?cinzenta é toda teoria, e verde apenas a árvore esplêndida da vida?. Incluem também alguns intelectuais, que não hesitam em desqualificar a razão, de modo quase sempre indireto, sob a influência de certos modismos, como a atual vaga neonietszchiana. E incluem determinados movimentos e partidos políticos, que tendem a recusar a teoria e fetichizar a prática. Teríamos assim, do ponto de vista dos atores, algo como um irracionalismo comportamental, um irracionalismo teórico e um irracionalismo político”.

Poderia-se ainda teorizar o tema naquilo que Nietzsche chamava de ketten-denken, ou pensador em cadeia, o que serve para todo aquele que adapta, à sua maneira, qualquer estrato ideológico perdido por aí (ver aforisma 376 de Humano, Demasiadamente Humano).

Vivemos num mundo de cocha de retalhos política. Em que a ocasião faz o ladrão. Há que se acostumar com o inaudito, com alianças políticas espúrias, com as regras do jogo sendo mudadas aos 46 do segundo tempo…

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