Tortura, doenças e restrição de comida: essa é a realidade dos presídios no país, denunciam entidades

Presos sofrem tortura e outros abusos nos presídios brasileiros, segundo entidades que fiscalizam as condições das unidades. Elas relatam que os agentes agem com violência e que a infraestrutura é precária, favorecendo a propagação de doenças e a falta de água e comida.

Os problemas são comuns em todas as regiões do país e afetam também a saúde dos detentos. Os estados dizem repudiar as práticas ilegais.

“Não sei o motivo, mas vários presos foram agredidos, levaram tiros. Eu tenho asma e desmaiei. Mesmo assim, apanhei desmaiado, deram uma coronhada no meu nariz e me arrastaram pelo chão. Quando voltei, estava sangrando e todo machucado, fui muito humilhado, a minha integridade física e moral foi completamente abalada”, diz trecho de uma carta escrita em 2023 pelo detento Alan Santos e encaminhada à Defensoria Pública do Paraná.

Segundo a perita Bárbara Suelen Coloniese, que foi responsável por relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, as agressões físicas são comuns, mas não são as únicas formas de tortura no sistema prisional.

“As celas superlotadas viraram depósito de pessoas porque não tem assistência a saúde, educação, trabalho, muitas vezes não tem kit de higiene. É um ambiente que não cumpre objetivo nenhum a não ser o de massacre”, disse.

Estudiosos do tema são contundentes na avaliação de que as condições das prisões fortalecem o crime organizado. Foram em contextos de abusos que surgiram facções como o Comando Vermelho e o PCC (Primeiro Comando da Capital) —como a Folha revelou os presídios do país vivem a expansão desses grupos e já convivem, ao todo, com 70 facções.

Além de casos de violência, como relata o detento Alan Santos, documentos da Defensoria Pública do Paraná mostram que na penitenciária de Cascavel a água destinada ao consumo e à lavagem de roupas provém de uma mangueira direcionada para o assento sanitário.

Segundo a Defensoria Pública de Pernambuco, a maioria das unidades prisionais no estado enfrenta problemas de abastecimento de água. A distribuição é feita apenas em três períodos do dia. No presídio em Santa Cruz do Capibaribe, a água tem cor marrom.

A qualidade da alimentação é denunciada em todas as regiões do país.

“A alimentação muitas vezes nos chega azeda, com insetos, caramujo, mosca, partes de barata. Tem um cheiro medonho e podre”, diz carta do interno que se identificou como José, encaminhada a uma associação de familiares da capital federal.

Na mesma carta, o detento chega a pedir ajuda a ministros do STF (Supremo Tribunal Federal). Ele relata torturas: “Agora a tortura é diferente, sem marcas no corpo, mas na alma. Um servidor segura o preso no golpe, conhecido como mata-leão, enquanto o outro abre o olho do interno com a ponta dos dedos e joga spray de pimenta em cada olho”.

Superlotação

A superlotação dos presídios é uma realidade. O país tem um déficit de mais de 162 mil vagas nos presídios estaduais. A instalação é tão precária no Complexo Penitenciário da Agronômica, em Florianópolis (SC), que um incêndio causado na ligação irregular da iluminação da cela matou três presos em fevereiro deste ano, de acordo com o relatório do Mecanismo de Prevenção à Tortura. Ao menos três incêndios já ocorreram desde o ano passado no estado.

Na Penitenciária Masculina Baldomero Cavalcanti de Oliveira, em Alagoas, vasos sanitários não funcionam e presos defecam e urinam em vasilhas e depois arremessam os excrementos para fora das celas. Eles convivem com insetos, mosquitos, ratos e escorpiões.

Falta de iluminação e de banhos de sol são problemas recorrentes no Complexo Penitenciário Manoel Carvalho Neto, em Sergipe, onde os presos precisam dormir no chão. Já no Curado, em Pernambuco, detentos são obrigados a descansar sentados, em pé ou amarrados às grades por falta de espaço.

“Daqui a alguns séculos, olharemos para os presídios com a mesma vergonha que hoje direcionamos ao período da escravidão. Para mim, é um paradigma muito parecido com o que a gente tem hoje nas prisões”, diz a diretora-executiva do centro de estudos Justa, Luciana Zaffalon. “Como a gente pode naturalizar essa barbárie? Quando todas as instâncias já reconheceram que é inconstitucional mas seguimos da mesma forma”.

No Paraná, a técnica de enfermagem Sirlei Schiessl, 54, não pôde visitar o filho, Edipo Benacio, 27, em decorrência das restrições impostas pela Covid. Ele estava preso na Penitenciária Estadual de Piraquara, na região metropolitana de Curitiba.

Nem por telefone teria conseguido falar com o filho, e recebeu informações que asseguravam que tudo estava bem. Dentro da cadeia, no entanto, Benacio estava doente. Ele morreu por causa de tuberculose e HIV. A mãe só tomou conhecimento da doença e do falecimento um dia após o ocorrido.

“Se eu tivesse sido informada sobre as condições de saúde, teria buscado amparo na Justiça na tentativa de obter prisão domiciliar. Ele foi vítima de maus-tratos e negligência, faleceu como se sua vida não tivesse valor. Ele ficou jogado como um lixo”, disse. Em dois prontuários médicos ficou registrado o desejo não atendido de Benacio encontrar com a mãe.

O desembargador Mauro Martins, conselheiro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), classificou como dramática a situação do sistema penitenciário, com inúmeras violações aos direitos humanos e à Constituição. “O que o CNJ tem feito é fiscalizar e construir uma interlocução com os poderes constituídos locais [presidentes dos tribunais, governadores de estado] buscando minorar a situação”, disse.

Segundo o desembargador, uma outra frente de atuação é investir para que tribunais criem rotina de mutirões nas varas de execuções penais para agilizar concessão de benefícios, com objetivo de reduzir a população carcerária.

Já o conselheiro Jaime de Cassio Miranda, presidente da Comissão do Sistema Prisional, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública do Conselho Nacional do Ministério Público, disse que foi instituído um grupo de trabalho para discutir torturas e maus-tratos.

A Polícia Penal do Paraná afirmou ser atuante por meio da Corregedoria na apuração das denúncias. Já a secretaria de Ressocialização de Pernambuco afirmou que todas as unidades prisionais do estado contam com o abastecimento de água potável.

Também em nota, a governo de Santa Catarina esclareceu que ações já foram tomadas após as denúncias registradas. O Distrito Federal diz que os contratos de alimentação são objeto de diligência. O governo também diz que apura denúncias que envolvam servidores.

Os estados de Alagoas e Sergipe não responderam.

Com informações da Folha de S.Paulo

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