O mendigo kitsch: Por Claudio Tognolli

Muito já se falou do efeito iatrogênico (o mal causado pela própria cura) que alguns interpõem à psicanálise – em que, francamente falando, a estetização da linguagem psicanalítica conduziria o paciente à criação de jogos de linguagem (Wittgenstein) que só funcionariam dentro da linguagem psicanalítica. Ou, por outra: ‘Preciso ir correndo ao psicanalista sem falta, hoje, porque acho que o meu Complexo de Édipo está me atacando’, diria um incauto sofredor da iatrogenia lingüística.

Seria a estetização dos nossos ‘males’, seria a estetização de aspectos ‘desagradáveis’ das nossas vidas, uma forma de escapar deles, dando-lhes uma plasticidade funcional? Pode ser que sim, no caso da mídia. É de causar escárnio, por exemplo, o bocejo de cidadania, extemporal, que a mídia tem dado à questão dos mendigos assassinados.

Já se escreveu sobre o gozo freudiano das elites em verem, aplaudindo, sempre, seus fellows sendo presos. Algo como: ‘Apesar de tudo, meu caro, eu me safei’. Quem teve acesso aos relatórios sigilosos da Operação Anaconda, por exemplo, sabe que gente investigada ali, ao osso, anda escrevendo em grandes jornais, por aí – ainda que torturando o estilo – contra a corrupção e a favor de amordaçar o Ministério Público.

A omissão sobre a cobertura dos mendigos data de 10 anos. A última grande cobertura do tema foi feita pela Folha de S. Paulo, em 1994, quando Betinho lançou a campanha Natal sem Fome: e a Folha botou todos os seus repórteres especiais, na noite de Natal, intrujados estrategicamente em favelas ou na Praça da Sé, para mostrar como era um Natal com fome… Bem, um repórter voltou correndo para a redação, ansioso para ver se constava do Aurélio de então o verbete ‘zóião’. Não constava. No outro dia, teve de recorrer ao plantonista de polícia para ficar sabendo que ‘zóião’ era ovo cozido, portanto o mendigo queria de Natal um ‘zóião’ para incrementar sua sopa com proteínas. Já um repórter fotográfico voltou à redação chorando: um menino de rua, na Praça da Sé, havia lhe dito que, como presente de Natal, queria que o Papai Noel assassinasse a sua mãe porque ela batia nele.

Efeitismo da pobreza

Essa saga de se cobrir mendigos, uma cobertura obviamente necessária, foi bravamente pontuada pelo repórter Gilberto Nascimento. Nos anos 1990 chegou a ganhar, por essas coberturas, o prêmio internacional Tito Brandsma, inclusive foi o primeiro a acompanhar, em toda a América Latina, no início da década passada, que os meninos de rua já chegavam à segunda geração morando na rua.

O que sobrou desses esforços? Nada. Sobraram eventuais e raras citações de George Orwell, sobre os seus cinco anos vivendo entre mendigos, o que gerou sua obra-prima Arrasado em Paris e Londres (1933). Sobraram eventuais coberturas sobre a antecipação da ‘moda mainstream’ por parte dos mendigos, todas vocalizadas pela revista dominical do New York Times. E algumas reportagens pour épater le bourgeois, uma na Folha em 2004– e as primeiras na revista norte-americana Details (que só mantém essa tradição off-broadway porque um de seus editores, Chris Spedding, além de ter sido um Whomble do Banana Split, seriado de TV, foi o guitarrista que gravou todo o Never mind de Bollocks, do Sex Pistols, datado de 1976). Tratavam obviamente daquilo que a polícia de São Paulo só começou a investigar semana passada: o site Bum Fights, que mostra olimpíadas violentas, protagonizadas por mendigos e patrocinadas por filhinhos de papai dos EUA presos cinco vezes pelo FBI.

A cobertura mea-culpa de nossa mídia foi toda regida pelo kitsch, vocábulo entendido, em Umberto Eco, como ‘o que surge já consumido’ (in: Apocalípticos e integrados), interpretado por Adorno como ‘a música culinária que escuta em lugar do espectador’ (in: Mínima moralia), circunscrito por Merquior como ‘o vulgar inconsciente que bota banca de beleza estética’ (in: Formalismo e tradição moderna), avacalhado por Mac Donald como ‘o midcult pseudo-refinado’ (in: Masscult and midcult) e, finalmente, pontuado por Abraham Moles como ‘obra prima pegajosa de lirismo sentimental’.

Ou seja, o burguês é tolerante: seu amor aos homens como eles são reflete o seu ódio ao homem como ele deve ser, frase aliás disparada por Adorno em Minima moralia. Estamos lidando com uma cobertura dos mendigos que se propõe dolosa, cheia de culpa criminosa. Estetizamos o mendigo e seu dia-a-dia como estetizamos nossos males na sessão psicanalítica. É dessa linhagem capa de Veja, de ano e meio atrás, a mostrar gente rica (Xuxa, Chitãozinho e Xororó) doando ceitis de suas fortunas aos mais necessitados…

Estamos a todo momento lidando, no termo de Merquior, com um efeitismo da pobreza. Não é uma cobertura regular. É, antes disso, raríssima. Que ora surge, filistina, pragmática (e portanto católica). Brindemos aos mendigos digestivos, estilizados, humanizados, brotando numa imprensa que deles se esqueceu e que, ora, coloca-os como número de pietismo a ser consumido por quem é ‘cidadão’ dentro do décor da burguesia brazuca.

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