Navegar é preciso: por que investir na Marinha Mercante é mais estratégico que nunca para o Brasil?

SPUTNIK

Quase tudo que é comprado e consumido no Brasil, em algum momento, passou pelo mar. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), cerca de 95% do que chega ao país do exterior vêm do mar e cerca de 91% do que exportamos também é feito por transporte marítimo.

Os números dão a dimensão da importância estratégica da Marinha Mercante para o maior país sul-americano e um litoral de mais de 7,3 mil quilômetros.

Do porto de Santos à zona franca de Manaus, transportando bauxita da Amazônia para abastecer a indústria do alumínio no Maranhão, minério de ferro do Itaqui para Pecém, para a indústria siderúrgica do Ceará, turistas do Oiapoque ao Chuí: os trajetos são inúmeros e todos dependem da atuação da Marinha Mercante.

A Marinha Mercante Brasileira, cujo dia é celebrado nesta quinta-feira (28) em homenagem ao nascimento de seu patrono, Visconde de Mauá, já teve aniversários mais pomposos, de acordo com analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, e precisa de mais motivos para comemorar.

Para o diretor da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), Aluísio de Souza Sobreira, somente a participação robusta do Estado pode trazer vantagens competitivas para esse conjunto de organizações, pessoas, embarcações e outros recursos dedicados às atividades marítimas, fluviais e lacustres de âmbito civil, a começar por investir na indústria naval.

“Uma Marinha Mercante brasileira mais competitiva e forte demanda condições de construir embarcações. O Brasil não é competitivo na construção naval, embora seja grande produtor de aço. Países como Japão, China, Coreia conseguem construir navios de forma competitiva, têm economia de escala, fabricam motores, têm um número expressivo de navios construídos por ano. No Brasil, quando tudo corre bem, é construído um navio mercante a cada dois anos”, assinalou ele.

Sobreira acrescentou que como o país não tem empresas de Marinha Mercante atuando no comércio exterior em termos de controle brasileiro e, sim, em função do mercado, o frete flutua ao sabor do mercado.

Doutora em estudos marítimos pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM/EGN), a pesquisadora Jéssica Germano também apontou a urgência de haver incentivos públicos para desenvolver a indústria nacional.

“Seriam empregos gerados aqui, tecnologia agregada também. Ao construirmos uma embarcação, desenvolvemos também periféricos: é um parafuso, é um sistema de tráfego, é um radar. São elementos adicionais, gerando um arrasto de outras tecnologias e desenvolvimento de outras áreas”, disse ela.

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Hoje, talvez mais do que nunca, comentou ela, o comércio marítimo é sinônimo de poder e prosperidade de um país. O fato de o Brasil não ter estaleiro para navios de grande porte no seu território é outro ponto negativo, segundo Sobreira:

“É comum navios grandes, petroleiros de grande porte, navios que operam com minério, de 388 mil tpb [toneladas de porte bruto], irem fazer reparos, docagens na Ásia, visto que não têm condições de fazer aqui, porque não tem nenhum estaleiro adequado para isso. E quando há um problema, o navio tem que ser rebocado”.

E para construir embarcações competitivas, destacam ambos os especialistas, investir em tecnologia é essencial, a fim de reduzir emissões, torná-las mais econômicas, rápidas, eficientes e seguras.

(Falta) Tecnologia para chamar de sua

Em um mundo cada vez mais tecnológico, cibersegurança e digitalização do espaço marítimo são algumas palavras-chave quando se fala em uma Marinha Mercante forte e dinâmica.

O fato de que alguns países da Europa e da Ásia já estão desenvolvendo embarcações autônomas dá a dimensão do atraso do setor no Brasil:

“Alguns países já estão discutindo a própria regulamentação dessas embarcações. Na Europa, estão sendo feitos testes no sentido de reduzir ou acabar com a necessidade de tripulação embarcada e levar cada vez mais um número maior de contêineres”, comentou Germano. “A gente [Brasil] ainda não está indo nesse sentido na área comercial”.

Na logística, o transbordo das cargas entre as embarcações e o porto no Brasil carece de equipamentos mais atualizados:

“Em muitos outros países, a gente tem já equipamentos logísticos que fazem isso de forma autônoma. Uma embarcação chega, os guindastes já vão, retiram, já passam para as esteiras, para os caminhões, já vai fazendo essa retirada da carga”, esclareceu a especialista.

As novas ocupações para esse mercado em transformação também já demandam capacitação, ressaltou:

“A mão de obra de um estivador, por exemplo, deve sumir com o tempo, e a tendência é que apareçam novos cargos, por exemplo, um controlador de drone, um programador para desenvolver softwares para operarem nos sistemas portuários”, elencou a acadêmica.

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A busca por energia mais limpa também está cada vez mais intensa, frisaram os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil.

“Rebocadores já estão começando a utilizar outro tipo de tecnologia, como o metanol. Há muito projeto a vir pela frente, esperamos que haja um incremento tecnológico em função de tudo que se tem em termos de transição energética”, comentou o diretor da AEB.

Nesse sentido, o sucesso estaria no fortalecimento da “tripla hélice”, que envolve Academia, Estado e o setor privado em pesquisas que desenvolvam tecnologias para reduzir as emissões, mas, “comparado a outros países, o Brasil ainda está engatinhando em relação a isso”, lamentou a pesquisadora da EGN.

(Faltam) Investimentos

O principal desafio para desenvolver plenamente o modal, de acordo com os entrevistados, é alocar de forma adequada os recursos disponíveis para fortalecer a indústria naval.

“Assim, quando uma empresa for pensar em construir um navio, não vai lá para fora, para Singapura, contratar construção de navio. Vai construir aqui, desenvolver mão de obra daqui, dar trabalho, emprego e renda”, argumentou Germano.

Administrado pelo Ministério de Portos e Aeroportos, por intermédio do Conselho Diretor do Fundo da Marinha Mercante, o Fundo da Marinha Mercante (FMM) é a principal fonte de recursos para financiar projetos como construção, modernização de navios e embarcações e recuperação de docas. A gestão é feita pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Já o Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) é a principal fonte de recursos do FMM.

Segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), seriam necessários, atualmente, cerca de R$ 223 bilhões em investimentos para a infraestrutura aquaviária brasileira.

Estudo da entidade divulgado recentemente aponta que em 2021 e 2022 os recursos do FMM foram desviados pelo Estado para pagar dívidas. A despesa autorizada do fundo chegou a R$ 10,64 bilhões, em 2021, e R$ 14,43 bilhões, em 2022, mas a maior parte foi para o pagamento de dívidas da União, aponta o estudo.

Com a Emenda Constitucional 127/2022, que alterou a Emenda Constitucional 109/2021, o superávit de fundos públicos passou a poder ser usado para pagamento de dívida pública, previsto no Art. 5º.

Embora legal, o redirecionamento impactou diretamente o setor, ao reduzir o investimento tanto em infraestrutura, embarcações, de carga e de passageiros, segundo Germano:

“São leis de mais de 20 anos e que vão sendo alteradas, o que envolve questões políticas também, destinação, como a própria questão das emendas. São recursos gerados dentro da própria Marinha Mercante e a ideia é que esses fundos fiquem no setor”, defendeu ela.

Uma lei elogiada pelos entrevistados foi a 14.301, de 2022, que autorizou a utilização dos fundos da Marinha Mercante para a realização de obras de infraestrutura portuária e aquaviária.

Ministério de Portos e Aeroportos informou, por meio de nota, que as mudanças na legislação abriram novas possibilidades de utilização dos recursos do fundo, especialmente com a inclusão de infraestrutura portuária e aquaviária, o que pode compensar a diminuição na arrecadação. Disse ainda que não há previsão de apropriação do superávit financeiro do FMM referente a 2023.

ápice de repasses pelo fundo ocorreu em 2010, quando cerca de R$ 4 bilhões foram investidos em projetos de desenvolvimento de novas estruturas. Em 2021, ano de pandemia da COVID-19, o recurso disponibilizado foi de R$ 58 milhões, segundo o BNDES, integralmente para reparos.

De 2011 a 2023, foram arrecadados R$89,8 bilhões com receitas originárias do FMM e utilizados R$ 31,4 bi, cerca de 35%. Em 2021, o BNDES financiou R$459 milhões com recursos do FMM para a indústria naval com foco em logística:

“O Brasil não consegue sequer gastar os recursos que arrecada. São recursos que passam pelo Tesouro apenas de forma escritural, mas que são arrecadados pelo adicional ao frete para renovação da Marinha Mercante. Se não tem Marinha Mercante renovada, é sinal que ele não está alcançando seu pleno objetivo”, ponderou o diretor da AEB.

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Os pesquisadores concordam, entretanto, que o Brasil não está parado. Germano cita, como exemplo, o Sistema de Gerenciamento de Informação do Tráfego de Embarcações (VTMIS), no Porto do Rio de Janeiro:

“É um sistema tecnológico que faz a gestão das embarcações, organiza a fila, detém informações sobre os produtos que as embarcações estão carregando, para onde vai, de onde veio”, explicou.

Em 2023, houve recuperação dos financiamentos de R$ 919,8 milhões, a maior parte para modernização de embarcações.

A flexibilização para que recursos possam ser utilizados no desenvolvimento de tecnologia e na atividade portuária, como aparelhos que atendam a movimentação de cargas, é algo que deve ser estimulado:

“Existe demanda para isso, o governo está sensível, em termos de logística, a utilizar mais o sistema hidroviário interior do país”, comentou Sobreira ao lembrar da criação da secretaria especializada para a navegação pelo Ministério de Portos e Aeroportos, prevista para janeiro do próximo ano.

Germano destacou a necessidade de reformas na gestão financeira, com transparência sobre de onde vieram e para onde vão os recursos do setor: “A gente depende de muitos fatores, sobretudo relacionados a questões normativas e de regulamentações, que consigam corrigir desvios”, concluiu ela.

O Ministério de Portos e Aeroportos informou que está em curso um “novo ciclo com a instalação dos parques eólicos no mar” e previsão de “grande número” de projetos relacionados ao setor de petróleo, tanto no transporte quanto na produção, para 2024.

No entanto, o desafio atual está na gestão eficiente do fluxo de caixa, uma tarefa que já estaria sendo conduzida pelo Conselho Diretor do Fundo da Marinha Mercante, explica a pasta.

Ainda segundo o ministério, em 2023, observou-se a retomada de projetos de construção de embarcações, com ênfase na navegação interior e em navios verdes para o apoio marítimo, incluindo 665 embarcações para hidrovias e a construção de dez embarcações verdes para o apoio à produção de petróleo.

“A navegação de apoio continuará a crescer, com dezenas de embarcações esperadas para os setores de petróleo e apoio portuário. Na navegação interior, a frota deve aumentar, refletindo melhorias nas condições de navegação e a expansão de trechos navegáveis devido a obras importantes, como a dragagem do rio Paraguai e o derrocamento dos pedrais do Lourenço e de Nova Avanhandava”, completa a nota.

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