O mundo vive uma epidemia de guerras. A combinação entre o número de conflitos, os incidentes e as mortes ligadas a eles tornou 2023 o ano de violência mais disseminada no planeta desde o fim do segundo confronto mundial, em 1945.
As mortes estão no maior ponto desde então, com a exceção de 1950, quando eclodiu a Guerra da Coreia e tombaram mundialmente 550 mil pessoas, e 1994, quando o genocídio dos tutsis em Ruanda criou um desvio sangrento na curva, com 800 mil mortes.
Segundo a recém-lançada Pesquisa de Conflitos Armados, do britânico IISS (Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, na sigla inglesa), houve 14% mais pessoas mortas em 2023 em relação a 2022: 267,7 mil faleceram.
Já os incidentes violentos ligados a embates subiram 28% ante o período anterior, passando a 137,8 mil. Aqui é importante estabelecer a metodologia: o IISS mede os dados de maio de 2022 a junho de 2023, o que deixa meio ano de violência de fora de uma conta fechada — incluindo o brutal genocídio que Israel promove na Faixa de Gaza desde os ataques do Hamas em 7 de outubro, que causou mais de 20 mil mortos de palestinos, principalmente mulheres e crianças, em pouco mais de dez semanas até aqui.
Só o crescimento apontado de mortes já supera em muito a demografia, já que a população mundial aumentou cerca de 1% ao longo de 2023, chegando aos 8,1 bilhões de habitantes. Nesse sentido, 1950 e seus 2,5 bilhões de habitantes e 1994, com seu 5,6 bilhões, foram proporcionalmente anos bem mais brutais em número de vítimas, mas de forma concentrada em dois eventos únicos.
Outro conflito marcante do pós-guerra, no Vietnã, teve segundo estimativas conservadoras 1,3 milhão de mortes, mas ao longo de 20 anos de combates. No caso do massacre dos tutsis pelos hutus em Ruanda, a matança ocorreu em meros três meses.
O IISS usa contas próprias e se alimenta de bases reconhecidas, como a do UCDP (Programa de Dados de Conflitos de Uppsala, elaborado pela universidade da cidade sueca homônima), do Acled (Projeto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos, ONG estadunidense) e de órgãos como a Cruz Vermelha.
Há, portanto, algumas diferenças estatísticas que permitem leituras variadas, mas o cenário é sombrio, dando corpo à impressão de tragédias sucessivas no noticiário: guerra na Ucrânia, o genocídio no Oriente Médio, tensões que vão da península coreana à Guiana, passando por Taiwan.
Pelos dados do Acled, nota-se a fatalidade em níveis na série histórica do pós-guerra só comparáveis a 1950 e 1994, anos de exceção. Já o UCDP, que mede desde 1975 o número de conflitos, nunca viu tantos: 183, ante um pico anterior de 176 em 2016.
Um motivo para isso envolve países como o Brasil e o México. “Vemos uma grande proliferação de conflitos com atores não-estatais”, afirma a editora da publicação do IISS, Irene Mia. Ela conta 459 grupos armados controlando a vida de 195 milhões de pessoas, a maioria (145 entidades e 79 milhões de moradores) na África.
Mas o Brasil chama a atenção devido à espiral de violência associada ao narcotráfico e ao crime organizado. Ocupa o terceiro lugar no mundo em eventos (10,6 mil) e o sexto, em mortes (8,3 mil), sempre naquele período encerrado em 30 de junho de 2023.
“É de certa forma natural e esperado que conflitos como Ucrânia, Palestina e agora a ameaça de conflito entre Venezuela e Guiana ganhem uma grande atenção e gerem forte apreensão”, afirma o gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani.
“Ao mesmo tempo, ofuscam as mortes por homicídios. Dentro destas mortes cotidianas, o Brasil é campeão com quase 50 mil por ano [aí somando a violência urbana regular]”, diz, citando estudo das Nações Unidas deste ano que mostrou que esse tipo de fatalidade é 5 vezes maior do que as registradas em guerras e 20 vezes, em atentados terroristas.
A invasão promovida por Vladimir Putin da Ucrânia, que completará dois anos em fevereiro, confirma também a volta da guerra entre Estados como fonte de desgraça. A crise europeia é líder tanto em mortes quanto em eventos violentos, nas contas do IISS, após passar anos na categoria de “conflito congelado”.
O nome é dado a confrontos que mantêm algum grau de violência, mas sem um avanço significativo, como foi o caso da guerra civil no leste da Ucrânia, bancada pela Rússia desde 2014. Morreram talvez 14 mil pessoas lá, mas a maioria no primeiro ano de combates. A tensão, contudo, nunca cessou, e desaguou no fevereiro de 2022
Isso mostra que “conflitos congelados sempre explodem”, diz o analista de segurança no Oriente Médio do IISS, Emile Hokayem. Outra prova disso é o fim da novela acerca de Nagorno-Karabakh, enclave histórico da Armênia que ficou no Azerbaijão após o fim da União Soviética, em 1991.
Por três décadas, Baku e Ierevan travaram duas guerras e várias escaramuças. Ao fim, numa campanha surpresa de 24 horas em setembro passado, os azeris tomaram a região para si, causando um êxodo de 120 mil pessoas. Houve poucas mortes, contudo — o conflito havia figurado no ranking dos 36 mais ativos do IISS em 2020 e 2021.
Com informações da Folha de S. Paulo.