Em dez anos, quase 17 mil pessoas morreram nos presídios brasileiros. Parte desses óbitos podia ter sido evitada, de acordo com especialistas da Vital Strategies.
O número de mortes registradas de 2013 a junho de 2023 foi obtido pela Folha de S. Paulo após 75 pedidos à Lei de Acesso à Informação, aos estados e junto ao Sisdepen, ferramenta de coleta de dados do sistema penitenciário brasileiro, vinculado à Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), do Ministério da Justiça.
Uma fatia desses dados, relativa aos anos de 2018 a 2022, foi analisada pela Vital Strategies — organização global composta por especialistas e pesquisadores com atuação junto a governos —, segundo a qual 95% dessas mortes ocorreram por causas evitáveis.
O detento Leandro de Oliveira Silva, de 37 anos, foi colocado numa solitária no presídio da Papuda, em Brasília, após ser acusado de desviar medicamentos controlados. Ele sofria de depressão e já teria tentado suicídio.
Segundo o pai, Etelvino Miguel da Silva, o remédio receitado pelo médico da unidade não estava funcionando com o filho. Ele ingressou na Justiça para que Leandro fosse atendido por um psiquiatra, mas não obteve sucesso.
O detento ficou sete dias num ambiente com água controlada, sem roupa de frio e cobertor quando a temperatura chegou a atingir 12° C, relata o pai. Morreu 15 dias depois. Etelvino diz que o filho contraiu pneumonia e morreu de infecção generalizada, não sendo vítima de Covid, como foi informado pela unidade.
– Tem um processo aberto na Justiça para investigar se houve omissão de socorro no dia da morte, mas o que eu quero que investigue são os sete dias que ficou na cela disciplinar, porque acredito que foi lá que entrou saudável e saiu com pneumonia – afirmou.
Os dados analisados pela Vital Strategies mostram que metade das mortes ocorridas dentro das penitenciárias brasileiras de 2018 a 2022 era de pessoas com menos de 38 anos de idade.
De acordo com a médica epidemiologista Fátima Marinho, chama a atenção a precariedade dos dados oficiais e o número significativo de óbitos relacionados a úlceras perfuradas, algo incomum no contexto brasileiro por ser pouco frequente e tratável.
Ela ressalta ainda que a úlcera pode evoluir para câncer gástrico, causado por uma bactéria que se desenvolve em alimentos mal refrigerados ou estragados. A incidência desse tipo de câncer em jovens no Brasil é praticamente inexistente devido às melhorias das condições sanitárias e de conservação dos alimentos em geladeiras. Os dados oficiais dos estados mostram vários casos de câncer gástrico e de próstata, todos considerados preveníveis.
Outro ponto de alerta foi o alto número de mortes por pneumonia. Para Marinho, que também é pesquisadora da Vital Strategies, esses óbitos devem ter sido causados por outras doenças, como HIV, Covid e tuberculose.
– No mínimo existe uma falta de cuidado com a saúde coletiva. Quando você olha para a população jovem morrendo por causas evitáveis, você tem que ter um programa de prevenção – disse.
A tuberculose é outra doença comum no sistema prisional. Segundo a pesquisadora em saúde pública Alexandra Sánchez, a chance de uma pessoa adoecer e morrer por causa da doença é oito vezes maior do que na população em geral.
Os dados oficiais sobre mortalidade nos presídios precisam ser vistos com reservas. O cruzamento do nome de mortos em alguns estados permitiu identificar discrepâncias entre a causa da morte informada pelos governos estaduais e a registrada no atestado de óbito.
Há ainda um crescente número de mortes por causas mal definidas. Segundo a perita Bárbara Suelen Coloniese, que foi responsável por relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, essa quantidade de laudos inconclusivos é decorrência da falta de recursos e da ausência de independência dos órgãos de perícia.
Até o número total de mortos fornecido pelo Estado brasileiro tem discrepâncias. Os dados fornecidos do Senappen, que tem base abastecida pelos estados, não coincidem com os informados diretamente pelos próprios estados.
Ao comparar o período de 2017 a 2022, a primeira base registra 11.534 mortes em 25 das 27 unidades da federação. Mas quando questionados diretamente na Lei de Acesso, essas 25 unidades da federação disseram ter cerca de 1.000 mortes a menos —Amapá e Bahia não encaminharam os dados.
Os estados não souberam explicar a diferença, mas afirmaram prestar assistência aos detentos dentro e fora do sistema prisional. Em todos os casos não foram contabilizadas mortes de pessoas que estavam em prisão domiciliar.
O Brasil é dependente das informações das unidades da federação porque nem o Ministério da Saúde consegue monitorar esse número. Quando o óbito entra no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), ele não indica se a pessoa estava presa. Há um projeto há cinco anos para tentar resolver essa questão, mas ainda não saiu do papel.
– Com exceção da tuberculose, as mortes nos sistemas oficiais de informação do Ministério da Saúde da população carcerária são invisíveis. A falta de estatística deixa tudo isso numa situação confortável – disse Sanchez.
Os dados oficiais do Ministério da Justiça também não especificam a causa da morte, apenas se ela ocorreu por motivos de saúde, por acidente, suicídio, crime ou causa não identificada. Por isso, foram necessários pedidos aos estados para obtenção das demais informações.
Além da precariedade das estatísticas oficiais, os relatórios de inspeção da situação carcerária produzidos após a pandemia apresentam dados preocupantes em vários pontos do país.
As defensorias públicas e a Comissão Nacional de Prevenção e Combate à Tortura alertam em seus relatórios a existência de condições insalubres, baixa qualidade da alimentação e falta de acesso à água potável, o que ocasiona adoecimento em massa.
Os reclusos descrevem doenças de pele, respiratórias, crônicas, tumores e problemas psiquiátricos.
O secretário nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça, Rafael Velasco Brandani, disse que a pasta tem prestado apoio às unidades da federação quando solicitado por elas. Ele frisou que os estados recebem recursos do fundo penitenciário e eles podem ser direcionados para a saúde.
– Nós temos também que tratar algumas coisas que antecedem e são objetivamente atinentes à saúde, como a água tratada. Estamos desde o começo do ano trabalhando com os estados para que possamos investir cirurgicamente – disse.
Os reclusos enfrentam dificuldades para obter medicamentos enviados por seus familiares e enfrentam restrições à hospitalização fora das instalações prisionais por alegada falta de escolta e de viaturas.
Com informações da Folha de S. Paulo.