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O recente furto de um ostensório da Igreja São Francisco de Paula, no centro do Rio de Janeiro, acendeu o alerta do público brasileiro para a questão do roubo de arte sacra por todo o Brasil. De acordo com um levantamento do IPHAN, há hoje cerca de 1.600 peças procuradas, mas esse número pode ser muito maior.
“Como o IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] lida só com os bens tombados a nível nacional, a gente tem aí uma subnotificação muito grande, porque existem os bens tombados a nível estadual, a nível municipal”, disse à Sputnik Brasil Rafael Azevedo, museólogo e historiador de arte do Iphan-RJ.
De acordo com o especialista, falta um maior cruzamento de dados entre os órgãos de tombamento do estado (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural — Inepac) e do município (Instituto Rio Patrimônio da Humanidade — IRPH). “O Inepac, aqui no Rio de Janeiro, também tem um banco de bens procurados e cerca de 500 objetos. Muitos deles não são tombados a nível nacional, então é mais uma informação que se cruza.”
Felizmente, aponta Azevedo, os esforços para a criação de um banco de dados único já estão sendo feitos.
“Recentemente, a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] assinou um termo de cooperação com o IPHAN justamente para isso, para ser pensada uma estratégia que consiga reunir informações a nível nacional que cruze informações estaduais, municipais, do IPHAN, da Igreja e que depois atraia outros órgãos e entidades, como o IBRAM [Instituto Brasileiro de Museus] e outros que têm museus.”
O papel da Igreja Católica nesses esforços é muito importante, destaca o museólogo, uma vez que ela detém cerca de 35% de todo patrimônio tombado a nível nacional.
adre Silmar Fernandes, curador da Arquidiocese do Rio de Janeiro, explica que muitas vezes esses roubos são feitos de forma amadora, crimes de ocasião, como foi o caso do ostensório, peça usada pela Igreja Católica para expor a hóstia consagrada sobre o altar. Nesse caso específico, “esse ostensório foi furtado por uma pessoa viciada em crack, que nem sabia o que estava fazendo”, disse o padre.
“Claro que também tem profissionais que podem furtar um bem móvel da nossa arquidiocese, das nossas igrejas tombadas. No entanto, ultimamente, quando acontece um furto, é de um modo até amador.”
Recuperação dos itens pode demorar anos
Da mesma forma, muitas vezes esses casos são resolvidos também de forma não profissional. “Sempre tem pessoas de boa vontade que percebem uma peça e aí acabam procurando [as autoridades], nós que somos da comissão e, também, pessoas do próprio IPHAN”, explicou o padre.
“Aqui no Rio, por exemplo, tem uma ‘Brigada do Patrimônio‘. São pessoas de boa vontade que defendem o patrimônio, têm os seus contatos e falam conosco. Aí entram os parceiros do IPHAN, nós também — que somos membros da comissão — para tentar salvaguardar aquela peça ou, pelo menos, trazer a peça de volta para a igreja.”
“O próprio mercado acaba devolvendo essas peças para os órgãos de tombamento de alguma maneira”, concorda Azevedo. “Depois de determinado tempo, alguém que às vezes até de boa-fé comprou uma peça que veio de um monumento tombado, essa pessoa falece e a família vai colocar isso em leilão.”
“Recebemos [notificações dos leilões] de todos os comerciantes do Brasil, ou seja, quando isso volta para os leilões, a gente acaba conseguindo identificar.”
Azevedo sublinha que, além dos comerciantes serem obrigados a se cadastrar no Cadastro Nacional de Negociantes de Arte e Antiguidades (Cnart), é importante que eles se mantenham atentos e averiguem a procedência do objeto, se ele veio de uma fonte segura, e não de algum monumento tombado.
Um dos casos mais recentes de artes recuperadas foi dos castiçais furtados da Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores. “Coisas que já tinham sido extraviadas dessa igreja há 30, 40 anos, estão voltando para cá, porque a gente está atento a essa questão do comércio de obras de arte.”
O museólogo destaca que a criação de um banco de dados únicos vai ajudar ainda mais a impedir a ação de comerciantes que agem de má-fé, uma vez que eles não vão conseguir mais agir dentro do mercado de artes legal.
“Tendo um banco de bens procurados e tendo os inventários sempre atualizados, a gente vai diminuir cada vez mais essa frequência. E é nisso que o IPHAN tem tentado trabalhar, os órgãos estaduais, os órgãos municipais, a Igreja, os museus e outros grandes proprietários.”
Para o acadêmico, a tecnologia, com o cruzamento de informações e a criação de novos canais de contato, vai diminuir cada vez mais o furto de obras de arte. Para Azevedo, a questão da defesa desses objetos não está em seu valor monetário, mas sim na preservação de uma memória.
“A gente está aqui para tentar levar para as próximas gerações, deixar para eles o máximo de legado, o máximo de patrimônio, o máximo de identidade e memória para eles poderem usufruir, porque quem legitima o patrimônio é a população.”