Documentos revelam movimentação de animais entre fazendas de um mesmo proprietário dentro e fora da área protegida, e, depois, remessas para o frigorífico, o que pode configurar “lavagem de gado”
Um esquema de criação ilegal de bois na terra indígena (TI) Marãiwatsédé, em Mato Grosso, pode ter beneficiado diretamente a JBS, gigante do setor da carne.
Documentos obtidos pela Repórter Brasil mostram que pecuaristas que arrendaram de forma irregular fazendas dentro do território do povo Xavante escoaram este gado para outras propriedades em seu nome ou de familiares, localizadas em municípios vizinhos. Estas, por sua vez, forneciam animais para a JBS – situação característica de uma manobra conhecida como “lavagem de gado”, quando produtores encobrem a origem ilegal de seu rebanho, registrando a passagem dos bois por uma fazenda que não tem impedimentos socioambientais para vender ao frigorífico.
A criação de gado por terceiros dentro de territórios indígenas é proibida pela Constituição, mas uma investigação da Polícia Federal aponta que na TI Marãiwatsédé isso acontecia mediante pagamentos de suborno a autoridades e a lideranças da etnia. Segundo um levantamento do InfoAmazonia, mais de 66% do território já virou pasto, o maior volume entre todas as terras indígenas no país.
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O esquema de arrendamento ilegal teve início em 2017, e há registros de movimentação de gado irregular de dentro para fora do território pelo menos até agosto de 2022 – mesmo depois que a Justiça determinou a retirada dos animais da área, cujo prazo, nunca cumprido, era abril de 2022. Já a JBS recebeu animais de pecuaristas envolvidos nas irregularidades pelo menos até fevereiro de 2023.
A empresa informa que bloqueou todos os fornecedores envolvidos no esquema: parte deles em setembro do ano passado, quando tomou conhecimento de um processo judicial envolvendo o caso, e parte em maio de 2023, após saber os detalhes da apuração da Repórter Brasil. “Todos os produtores mencionados estão impedidos de comercializar com a companhia”, sintetiza.
De pai para filho
Ao todo, a Repórter Brasil localizou cinco casos de fazendeiros que constam em uma lista de arrendatários ilegais atuando na TI Marãiwatsédé e que venderam gado para a JBS ao longo dos últimos anos. A relação de nomes foi anexada a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal que pede a reparação dos danos ambientais e sociais provocada pela exploração ilegal de pecuária no interior da terra indígena.
O maior dos arrendatários dentro da Marãiwatsédé é Zaércio Fagundes Gouveia. Dono de um patrimônio estimado pelas autoridades em R$ 595 milhões, incluindo um avião e um helicóptero, ele explorou uma área de 35 mil hectares dentro da TI, quase 20% da área total deste território Xavante.
Em abril de 2022, Gouveia foi citado em uma matéria do Washington Post, acusado de lavar gado criado em áreas embargadas para vender a frigoríficos. De acordo com o jornal, isso fez com que a JBS bloqueasse o produtor rural em seu banco de fornecedores diretos. Mas há grande chance de que os animais de sua propriedade irregular dentro da TI tenham alcançado os abatedouros da companhia por uma via indireta.
Gouveia é filho do produtor rural Guimarães Fagundes de Oliveira, outro arrendatário de terras na TI Marãiwatsédé. Entre julho e agosto de 2022 – três meses após o prazo dado pela Justiça para o fim das atividades de pecuária dentro do território Xavante –, Gouveia repassou ao menos 950 animais de dentro da TI para engorda na fazenda Nossa Senhora Aparecida, em Santa Cruz do Xingu, localidade distante cerca de 300 quilômetros da área protegida.
A propriedade está cadastrada formalmente no nome do pai, Oliveira, mas é o endereço registrado na Receita Federal de uma holding familiar que tem os dois como sócios. Além disso, postagens nas redes sociais demonstram que Zaércio Gouveia trabalha no local.
A fazenda Nossa Senhora Aparecida forneceu gado regularmente para a JBS até fevereiro de 2023. Em agosto do ano passado, foi inclusive premiada com o segundo lugar na categoria Machos do Circuito Nelore de Qualidade, etapa Confresa – que envolveu lotes abatidos pela JBS na cidade.
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A JBS garante que não compra animais de produtores que utilizam ilegalmente reservas indígenas e sublinhou que Zaércio Gouveia estava bloqueado desde o ano passado em seu sistema de fornecedores. “Porém, [a empresa] não têm acesso às Guias de Transporte Animal que evidenciariam que gado produzido ilegalmente em reservas indígenas foi transportado para unidades que estão de acordo com os critérios socioambientais do setor e, então, negociados com a empresa”, justifica o frigorífico. Após ser informada pela Repórter Brasil do risco de lavagem de gado através da fazenda Nossa Senhora Aparecida, também, Guimarães Oliveira foi bloqueado – “preventivamente” – pela JBS.
Os produtores, por sua vez, afirmaram que “todos os esclarecimentos já foram satisfatoriamente feitos perante as autoridades competentes”, e que Oliveira “jamais exerceu qualquer atividade no interior de TI” – embora documentos anexados em uma Ação Civil Pública listem seu nome como “arrendatário” de uma propriedade no local. Veja a íntegra das respostas aqui.
Sem monitoramento
Não há como assegurar que os animais criados ilegalmente na TI tenham sido abatidos pela JBS porque o sistema de rastreabilidade utilizado pelos frigoríficos acompanha lotes de animais, não indivíduos. Desde 2009 as empresas se comprometem a monitorar toda a cadeia de fornecedores, incluindo fazendas intermediárias por onde passou o gado, mas até hoje isso não foi totalmente implementado.
Em sua nota, a JBS admite que nenhum dos pecuaristas identificados pela reportagem aderiu à Plataforma Pecuária Transparente, ferramenta desenvolvida pela empresa para “estender o monitoramento socioambiental aos fornecedores de seus fornecedores” – e que, segundo a empresa, poderia prevenir a aquisição de gado com origem irregular.
“Até o momento, 45% da base da produção da JBS está cadastrada, sendo que nenhum dos fornecedores citados está nesse grupo. Até o fim do ano, a meta é chegar a 57%”, completa a JBS, que diz ainda que a partir de 1º de janeiro de 2026 só fará negócios com produtores inscritos na ferramenta. A íntegra pode ser lida aqui.
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Propinas e devastação
A ponta do novelo do esquema de arrendamento ilegal na TI Marãiwatsédé começou a ser puxada em março de 2022, quando a Polícia Federal realizou a operação Res Capta. Os agentes buscavam desarticular um esquema de corrupção que envolvia fazendeiros, lideranças Xavante e funcionários da própria Funai. De acordo com a investigação, servidores cobravam propina de grandes fazendeiros da região para intermediar arrendamentos dentro da terra indígena.
Estes produtores rurais também faziam repasses de cerca de R$ 900 mil por mês a uma liderança Xavante. À época, a defesa do cacique informou que o valor era destinado a toda a comunidade da TI, sendo dividido entre todas as aldeias do local.
O próprio coordenador da Funai na região chegou a ser preso durante a operação, acusado de cobrar uma taxa de 10% dos valores do arrendamento. O caso respingou também no então presidente da instituição, flagrado em conversa telefônica divulgada pelo jornal O Globo oferecendo amparo ao servidor detido: “Pode ficar tranquilo aí que você tem toda a sustentação aqui. Pode ficar sossegado”.
A PF buscava também colocar um freio na destruição da floresta dentro da TI Marãiwatsédé: em quatro dos 15 arrendamentos ilícitos, o dano ambiental da exploração ilegal da pecuária no local chegou a ser estimado em mais de R$ 58 milhões. Ao menos 70.000 cabeças de gado foram criadas nestas fazendas ilegais.
De acordo com imagens de satélite de alta definição obtidas em maio deste ano e analisadas pela ONG Environmental Investigation Agency US (EIA) a pedido da Repórter Brasil, ainda há gado na TI pastando perto de alguns pontos identificados pela Polícia Federal como sendo locais de arrendamento ilegal. Mais de um ano após determinação da Justiça para que o rebanho fosse retirado.