Uma das grandes polêmicas da internet nos últimos dias foi a aprovação recorde de recursos para captação via Lei Rouanet. O valor, de mais de R$ 16 bilhões em 2023, supera a soma dos quatro anos do governo passado. O fato soou como uma retribuição à classe artística, que teve papel fundamental na eleição do atual presidente, o que gerou muitas críticas da oposição.
Para entender se houve alguma anormalidade nessa liberação, e quais os seus impactos no orçamento público, o Instituto Millenium entrevistou Sérgio Sá Leitão, ministro da Cultura no governo de Michel Temer. Ele também foi Secretário de Cultura do Estado de São Paulo, é consultor sênior da FGV Projetos, presidente do LIDE Cultura e sócio e CEO da produtora audiovisual Cine.E.
Defensor da Lei Rouanet, Leitão Sá acredita que a liberação recorde não terá grandes impactos no orçamento, e que há muitas críticas a essa legislação por preconceito e falta de informação. Leia a entrevista abaixo e entenda o ponto de vista do especialista.
Instituto Millenium: Recentemente, houve um salto significativo nos gastos do governo com a Lei Rouanet, ultrapassando 16 bilhões de reais em renúncia fiscal. Em sua opinião, quais são as razões por trás desse aumento e quais preocupações isso traz em termos de políticas públicas e gestão fiscal?
Sérgio Sá Leitão: É preciso esclarecer que o valor divulgado de R$ 16 bilhões corresponde à soma dos valores que podem ser captados pelos proponentes dos projetos aprovados em 2023 pelo Ministério da Cultura no âmbito da Lei Rouanet. Não se trata do valor total da renúncia fiscal relativa à Lei Rouanet no exercício de 2023. Este dado será divulgado apenas no início de 2024. O teto de renúncia para a Lei Rouanet em 2023 foi, como acontece todos os anos, estabelecido pela Lei Orçamentária aprovada pelo Congresso Nacional. É um valor menor: R$ 1,6 bilhão. A Lei Orçamentária foi aprovada tendo em vista os parâmetros do ajuste fiscal. Não há, portanto, risco de dano ao ajuste fiscal, ao menos no que diz respeito à Lei Rouanet. Houve de fato uma elevação significativa do número de projetos aprovados e do valor total de captação. Isso se deve basicamente ao fato de que o Governo Bolsonaro estabeleceu normas e práticas operacionais restritivas no que se refere à Lei Rouanet, sobretudo entre 2020 e 2022. Havia portanto uma demanda represada.
IM: A Lei Rouanet tem um modelo que, em teoria, evitaria grandes interferências governamentais na escolha dos projetos. No entanto, há uma visível diferença no teor dos projetos aprovados no governo Bolsonaro e Lula. Enquanto um destinou grandes montantes a projetos do segmento evangélico, por exemplo, o outro retirou o segmento “arte sacra” da lista dos projetos atendidos. O que pode ser feito para evitar esse tipo de interferência?
SSL: A Lei Rouanet é o melhor e mais eficiente e eficaz instrumento de financiamento público da cultura já estabelecido no Brasil. Os resultados positivos ao longo dos mais de 30 anos de vigência são evidentes, como atesta o estudo de impacto econômico realizado em 2018 pela Fundação Getúlio Vargas, a pedido do Ministério da Cultura. Quando o governo interfere mais em seu funcionamento, os resultados pioram; quando se limita a cumprir o papel definido na Lei, os resultados são mais positivos para o setor cultural e a população. O período em que houve maior interferência estatal indevida na Lei Rouanet foi entre 2020 e 2022. Penso que as medidas tomadas em 2023 pelo Governo Lula recolocaram a Lei Rouanet no seu curso legal e necessário. Deve-se entender a Lei Rouanet primeiro como um mecanismo de incentivo a um setor (a economia criativa) que responde por 3,11% do PIB brasileiro e apresenta amplo potencial de crescimento e de contribuição para o desenvolvimento do Brasil; e segundo, como um mecanismo de ampliação do acesso da população a um direito assegurado pela Constituição, o direito à cultura, que gera um excelente resultado em termos de qualificação dos indivíduos e das relações sociais. Para a Lei Rouanet funcionar bem, basta cumprir adequadamente o texto legal.
IM: Como podemos implementar medidas para garantir que artistas de grande sucesso e recursos financeiros não recebam quantias substanciais de financiamento público, financiado em sua maioria por uma população de baixa renda que enfrenta dificuldades para atender às suas necessidades básicas? Ou isso não é um problema?
SSL: Isso não é um problema. Trata-se de um mito construído ao longo de anos que, infelizmente, não foi devidamente enfrentado e esclarecido. A Lei Rouanet foi muito atacada nos anos 90 e 2000 por parte da esquerda, que a taxava equivocadamente de “neoliberal”. Depois, foi muito atacada nos últimos dez anos por parte da direita, também com base em premissas falsas. A Lei Rouanet é um mecanismo de incentivo fiscal democrático e republicano que existe para estimular o crescimento de um setor estratégico da economia e da vida social, e ampliar o acesso da população a algo fundamental para o bom funcionamento da sociedade. A maior parte dos recursos vai para o funcionamento de museus e centros culturais, a realização de festivais e eventos gratuitos, a preservação do patrimônio histórico e a produção e circulação de espetáculos relevantes de todos os tipos e gêneros. No campo dos museus, por exemplo, apenas os estatais existiriam sem a Lei Rouanet; e mesmo assim, precariamente. É importante destacar, porém, que o incentivo fiscal não pode ser o único mecanismo de financiamento público da cultura; é preciso haver mecanismos de fomento direto, como a Lei Aldir Blanc, que tem um perfil complementar ao da Lei Rouanet.
IM: Como podemos equilibrar o apoio à cultura de artistas menos populares sem impor à população o financiamento de artistas que não escolheriam por vontade própria assistir? A cultura popular não deveria ser algo espontâneo?
SSL: Reitero que a Lei Rouanet deve ser entendida como um mecanismo de estímulo ao desenvolvimento de um setor estratégico da economia e da vida social brasileira, que gera resultados muito positivos em termos econômicos e sociais. Esses resultados são tangíveis (como o elevado impacto na geração de renda e emprego mensurado pela Fundação Getúlio Vargas no estudo de 2018) e intangíveis (como o impacto positivo na formação dos indivíduos e na qualificação das relações sociais, com efeitos sobre a educação, a saúde, a segurança pública e o turismo, por exemplo). Deve ser entendida também como uma poderosa ferramenta de ampliação do acesso à cultura, que é um direito constitucional, por meio de eventos, projetos, acervos e espetáculos gratuitos ou com ingressos a preços reduzidos. A população se beneficia diretamente da Lei Rouanet no que diz respeito às externalidades positivas dos processos de geração de renda e emprego produzidos e também por meio do acesso facilitado a uma oferta cultural de alta qualidade e grande diversidade.
IM: Acredita que a Lei Rouanet, através de seu modelo atual de financiamento, pode estar contribuindo para distanciar os produtores culturais e artistas do público, reduzindo o ‘skin in the game’ e os mecanismos de feedback entre a audiência e os criadores artísticos?
SSL: A Lei Rouanet impacta positivamente o desenvolvimento da economia criativa no Brasil e as relações entre arte, mercado e consumo. Todos os estudos evidenciam isso. É um fator chave de geração de emprego e renda, de formação de público, de qualificação de artistas, técnicos e gestores culturais, de ampliação, diversificação e qualificação da oferta cultural, de estímulo ao consumo e de ampliação do acesso da população à cultura. Obviamente ela não dá conta de todas as questões. Por isso há o mercado 100% privado e as indústrias culturais, que têm dinâmicas próprias e complementares às geradas pela Lei Rouanet; e por isso deve haver também o fomento público direto, como no caso da Lei Aldir Blanc ou da Lei Paulo Gustavo. É vital que o mercado funcione bem; e que o fomento público direto seja contínuo, como acontece no caso da Lei Rouanet. O público e o privado se complementam e devem funcionar em equilíbrio para que a economia criativa realize o seu potencial de crescimento e de contribuição para o desenvolvimento econômico e social do país. O Brasil tem tudo para se tornar uma das maiores potências culturais e criativas do planeta no Século 21; e isso fará muito bem para a sociedade brasileira.
IM: Existem exemplos internacionais de modelos de financiamento cultural que poderiam inspirar uma reforma da Lei Rouanet, especialmente no sentido de promover uma maior autonomia e participação do setor privado?
SSL: Precisamos deixar o complexo de vira-latas de lado. A Lei Rouanet é um dos melhores e mais reconhecidos mecanismos de incentivo à cultura do planeta. Trata-se de um instrumento de política pública de cultura admirado em muitos países. Já participei de centenas de conferências em todos os continentes, e sempre que abordei a Lei Rouanet a receptividade foi muito positiva. Há diversos aspectos inovadores e até mesmo brilhantes na Lei Rouanet. Ela só funcionou mal quando o poder público não desempenhou adequadamente o seu papel. Se hoje empresas como o Itaú investem centenas de milhões em recursos próprios no setor cultural e criativo, é porque houve um processo de relacionamento com a área, estimulado inicialmente pela Lei Rouanet. Claro que ela pode e deve ser aperfeiçoada; e pode e deve ser complementada por outros mecanismos. Mas é preciso sobretudo preservá-la e valorizá-la; e, claro, valorizar o setor cultural e criativo brasileiro.