A desinformação mata e plataformas precisam ser alvo de regulamentações. A recomendação é do alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Volker Turk. Em entrevista exclusiva ao colunista Jamil Chade, do portal UOL, o austríaco admite que os atos contra os Três Poderes no Brasil, há quase um ano, geraram “arrepios” no mundo.
Turk ainda aponta para a necessidade de se restabelecer um princípio básico: mentir é errado. Visivelmente preocupado com a proliferação de desinformação, ele aponta como o risco envolve não apenas a vida de pessoas, mas a sobrevivência da democracia.
Segundo ele, o Brasil precisa aproveitar a data do 8 de janeiro para reforçar a mensagem de que o autoritarismo e a repressão apenas geram mais pobreza e desigualdade. Para Turk, a luta pela democracia terá de ocorrer todos os dias e, se a sociedade não agir, ela pode estar ameaçada.
Em sua avaliação, parte do obstáculo no Brasil é ainda o de lidar com a ditadura militar (1964-1985). “Caso contrário, os fantasmas do passado vão reaparecer”.
Eis os principais trechos da entrevista:
Chade: O novo governo brasileiro cumpre um ano no poder. Mas os desafios de direitos humanos continuam presentes. Muitos desses problemas são estruturais. Na avaliação do senhor, quais são os principais desafios de direitos humanos hoje no Brasil?
Turk: Tive a oportunidade de encontrar com o ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida. Também estou encorajado pela clara determinação do governo de colocar direitos humanos no mapa, no Brasil. E também pelo fato de que uma das primeiras viagens do presidente Lula tenha sido aos territórios indígenas, em Roraima, para ver o povo Yanomami. Foi uma sinalização importante.
Mas, como você aponta, os problemas são estruturais. É importante entrar profundamente nos temas, ao lidar com direitos humanos. Os direitos humanos precisam estar incorporados em todas as instituições do estado. Não deve depender de quem lidera o governo. Deve haver esse compromisso.
Mas também no Judiciário. Vimos o papel importante do Supremo Tribunal Federal, principalmente com relação aos direitos indígenas. Também é importante que essa consideração esteja presente nas forças de ordem. Neste aspecto, isso é um grande problema. Não apenas na América Latina, mas também no mundo. Quando falamos de polícia, frequentemente vemos os problemas de racismo. Vemos também o aumento da violência — o Brasil é ainda um dos países que sofre muito com o crime organizado e altas taxas de homicídios.
Esses problemas estruturais da violência precisam ser tratados. Eles frequentemente têm relação com a desigualdade, com marginalização e com questões de direitos humanos. É uma questão de inclusão, respeito e garantir que comunidades façam parte do tecido social.
E como o senhor avalia a situação das redes sociais?
Esse é outro problema que vejo no caso do Brasil, um fenômeno que vemos em outras partes do mundo, que é a disseminação de desinformação. Vimos a negação dos resultados da eleição nos EUA e no Brasil. E isso é muito perigoso. É a erosão direta do sistema político e vai ao coração da liberdade.
Você criar uma neblina na mente das pessoas, com fake news e com lavagem cerebral, e essas pessoas acreditam em coisas que não são mais fatos. Precisamos que a mentira seja algo errado de novo.
Vamos completar um ano dos ataques de 8 de janeiro, contra a democracia brasileira. Que mensagem aquele ato mandou ao mundo?
Provavelmente tudo isso começou com o que ocorreu nos EUA, em 6 de janeiro de 2021, com os eventos no Congresso americano. Os EUA são conhecidos como um país democrático, com respeito ao estado de direito. Ter aquela situação na qual o resultado de uma eleição é colocado em dúvida, ao ponto de levar à violência, é algo que o mundo ainda está tentando entender.
Falando sobre o que ocorreu no Brasil, nos deu arrepios ao ver que em países importantes tendências similares aparecem. E isso tem uma relação com um quadro onde fatos e evidências não contam numa realidade paralela.
Democracia, liberdade, a coexistência de diferentes pontos de vista apenas podem se desenvolver se pelo menos pudermos aceitar os fatos e a realidade. E se isso não é o caso, é muito perigoso.
Em todo o mundo, inclusive na ONU, esses atos precisam gerar um momento de reflexão para que possamos pensar o que podemos fazer sobre isso. Em 2024, inclusive, teremos eleições importantes.
Na avaliação do senhor, a democracia está ameaçada em nossa geração?
Sim, acho que está ameaçada, se não tomarmos cuidado. Vemos entre os jovens uma desilusão muito grande em relação às instituições políticas. Há uma desilusão até mesmo com o processo eleitoral, acreditando que ele não leva mais a nada. O resultado é que esses jovens se afastam. E precisamos exatamente do contrário. Precisamos que os jovens se engajem na política, se informem, que saibam história, saibam de onde as coisas vieram, o que significam. O Brasil enfrentou uma ditadura militar. Francamente, muitos europeus também. Eu sou da Áustria, onde vivemos ainda pior, com um regime totalitário.
Sabemos que direitos humanos são instrumentos de liberdade e esperança. Mas não podemos dar como assegurado a garantia dos direitos humanos. Cito Stefan Zweig. Se olharmos para seu livro O Mundo de Ontem (sobre o período vivido na Europa durante as duas grandes guerras do século 20), vemos a descrição de um mundo com lavagem cerebral, pessoas que não viam o outro, não acreditavam em instituições, não acreditavam no contrato social.
E é importante que possamos levar pessoas para a política. Pessoas que são diferentes da elite política quer vemos hoje. Precisamos pessoas que acreditam em transformação, em direitos humanos. E que querem enfrentar os grandes desafios de nossa era.
No caso do Brasil, Bolsonaro perdeu a eleição, apesar de tudo. Mas a derrota dele é o ponto final da ameaça à democracia. Ou temos de nos acostumar que a luta pela democracia será diária?
Temos de lutar pela democracia todos os dias. Precisamos fazer uma avaliação profunda do que ela significa. Mas também encontrar o espaço público para que a democracia possa funcionar. Isso significa não estar em sua bolha. Mas fazer parte de uma discussão na qual possamos ouvir argumentos, debater, concordar em discordar. Mas sempre com respeito.
E ter um consenso básico na sociedade que preserve as instituições do estado, mas também os fundamentos da crença democrática. Se perdermos isso, estamos numa situação perigosa. O que vem no lugar é o populismo e o autoritarismo.
Como, então, o senhor explica o avanço da extrema direita em tantas partes do mundo?
Tem uma relação com o medo. Com a exclusão de pessoas, com o fato de não levá-los a sério. E tem uma relação com política de identidade. Ou seja, reduzimos a complexidade de nosso mundo a uma questão. E tornamos aquilo a grande coisa. Claro, estamos num mundo repleto de incertezas e enormes desafios — com guerras e mudanças climáticas. Havia também um sentimento de que uma certa renda estava assegurada. Também precisamos levar em conta a globalização que, em certos setores, excluiu pessoas e que as deixou numa situação de pobreza.Continua após a publicidade
Nessa situação, sempre existem aqueles que procuram as respostas fáceis, que não querem lidar com as complexidades. Que temem pelo seu futuro e de suas crianças e que não são levados a sério pelas elites políticas. E isso é muito sério.
Precisamos de uma profunda reflexão por todas as partes da sociedade sobre o que é o nosso futuro comum. E como chegar a isso. Esse é o grande desafio.
Qual é, na sua avaliação, a mensagem que deve ser enviada ao marcar o 8 de janeiro?
Seria importante relembrar que a ditadura, repressão, manipulação, populismo e ausência de liberdades apenas geram mais desigualdade, mais pobreza, mais manipulação daqueles que querem ganhar com isso. E relembrar dos fundamentos da democracia e liberdades.
O sistema legal é a resposta?
É a resposta. Mas também a regulação das plataformas das redes sociais. Vimos na Europa uma tentava mais forte de chegar a isso. A desinformação causa dano e a incitação ao ódio devem ser linhas vermelhas, do ponto de vista de direitos humanos.
A palavra liberdade parece ter sido sequestrada. No caso do Brasil, existem grupos que insinuam que você tem também o direito a mentir e que não existem limites para a liberdade de expressão. É isso que diz o direito internacional?
Eu queria muito que políticos, e o público de uma forma geral, entendessem melhor o que é o conceito de direitos humanos. Trata-se de um pacote que inclui direitos econômicos, sociais, políticos e civis. Inclui o direito ao meio ambiente e tantos outros. Mas também inclui restrições sobre o que impacta aos demais.
Incitar o ódio é uma violação ao direito internacional. O mesmo com a desinformação que causa dano. Vimos o que ocorreu na pandemia, quando coisas sem qualquer sentido causavam dano às pessoas e levaram à morte dessas pessoas. Portanto, do ponto de vista de direitos humanos, não podemos deixar que esse tipo de desinformação se prolifere numa forma que causa dano para muitos.
O fato de o Brasil não ter lidado com seu passado autoritário é ainda um obstáculo?
Acho que sim. Posso falar do meu próprio país. Por muito tempo, houve um mito na Áustria de que éramos a vítima. Não se viam como os perpetradores dos crimes e isso é perigoso. Precisamos lidar com a história. Falamos de justiça de transição e verdade. Caso contrário, os fantasmas do passado vão reaparecer. Mas reconhecer o passado não precisa gerar um racha na sociedade.
Há espaço ainda para uma Lei de Anistia?
A norma nos direitos humanos é clara. Não se pode dar anistia para sérias violações de direitos humanos.
Então o Brasil precisa rever sua Lei de Anistia?
Acho que precisa ver o espectro completo de como lidar com o passado.
Na Argentina, como o senhor vê a situação diante das propostas do novo presidente?
Meu entendimento de liberalismo é sobre liberdade. Não pode ser um menu a la carte. É um pacote. Se quer mais liberdade econômica, precisa também vir com as demais liberdades, como liberdade de associação, de opinião, de proteger direitos trabalhistas. Não se pode ter liberdade apenas para a elite econômica às custas dos demais.