Celso Lungaretti :MASSAFUMI ESTARIA FAZENDO 75 ANOS; MATOU-SEAOS 27, DESTRUÍDO PELA DITADURA MILITAR E PELO FOGO AMIGO


E PELO FOGO AMIGO

Nascido em 22 de janeiro de 1949, Massafumi Yoshinaga estaria completando 75 anos nesta 2ª feira.

Conheci-o como integrante da 

FES – Frente Estudantil Secundarista, criada no início de 1968 para reforçar a participação de tal segmento no combate à política educacional da ditadura, pois a

 Upes – União Paulista dos Estudantes Secundaristas estava esvaziada. 

Dela só restava, como uma alma penada, dirigindo assembleias raras com participação rala, o presidente, Antônio Ribas, que adiante seria um dos guerrilheiros do Araguaia executados pelos militares.
Pretendíamos reerguer o movimento secundarista pela base e, no final do ano, tomarmos a Upes, restituindo-lhe a representatividade que perdera em decorrência de disputas ideológicas (e, amiúde, zoológicas) de tendências de esquerda. No final, as litigantes se retiraram e a deixaram ao léu.
Era um nissei alegre, brincalhão, que adorava fazer movimento de massas. Mas, eu só encontrava com ele nas passeatas, assembleias e outros acontecimentos maiores. No dia a dia, ele integrava a FES da zona sul e eu, a da zona leste.  
Já lá se vão 55 anos, mas ainda me lembro de uma parceria marcante que fizemos no finalmente realizado congresso da Upes. A FES cindira-se em duas e a zona centro estava presente com pelo menos uma centena de estudantes do Colégio de Aplicação da USP. Eles adoravam discutir política, eram filhos da classe média intelectualizada.
O nosso lado, das proletárias zonas leste e sul, conseguira a muito custo levar um tiquinho de representes de escolas da região.

Personagens dos arrependimentos iniciais: Marcos Vinícius, Massafumi e Rômulo Augusto

Logo no início dos trabalhos, submeteu-se a votação a questão de se as decisões seriam tomadas por colégio ou por pessoa. Mas, como essa escolha se deu por maioria simples, perdemos de goleada. E estávamos condenados à derrota em todas as subsequentes.
Era um início de tarde de sábado e decidimos alongar ao máximo os trabalhos, para que o congresso fosse interrompido e terminasse no domingo. Assim, durante a noite, tentaríamos convencer os ex-companheiros a adotarem uma postura mais razoável.
Então, dois provocadores assumimos a missão de causar paralisações, principalmente indignando os estudantes do Aplicação. O Massafumi os levava à loucura, com suas frases desdenhosas sobre “os filhinhos de papai mimadinhos e aplicadinhos, incapazes de somar forças com outras tendências”. Queriam até bater nele, mas os líderes os continham.
Eu os cutucava de outra maneira, argumentando serenamente com a retórica que usávamos, mas as conclusões acabavam sendo igualmente indigestas para eles, enfurecendo-os.

Após mês e meio nesta área de Jacupiranga, o Massa decidiu
sair em busca de um caminho fora da luta armada. Não achou.

Divertimo-nos muito, completamo-nos às mil maravilhas e conseguimos nosso intento: a conclusão do congresso ficou para o domingo.
Um ano depois nos reencontramos como combatentes da 

 VPR – Vanguarda Popular Revolucionária.  
Integrávamos a equipe precursora que avaliava se uma propriedade na região de Registro servia para instalarmos nossa primeira área de treinamento de guerrilha. Estávamos em cinco (inclusive o comandante Carlos Lamarca) e lá ficamos por um mês e meio.
Foi vetada, por apresentar diversos inconvenientes. E, na hora de a desocuparmos, ambos decidimos não seguir adiante no trabalho de campo, por diferentes motivos. 
Eu, porque traumatizado com a morte do Eremias Delizoicov, a quem conhecia desde o curso primário, não aguentava mais tomar conhecimento da desgraceira daquela fase vários dias depois dos acontecimentos. 

Mesmo muito procurado pela repressão, preferia ficar no olho do furacão (as cidades) e, se possível, prestar alguma ajuda aos companheiros que sob minha liderança haviam ingressado na VPR.   
O Massa porque, a partir de sua transição abrupta do movimento de massas para a luta armada, passou a ver-se como um estranho no ninho. 

Queixava-se de estar distante das pessoas simples, sentindo, nas suas palavras, falta de calor humano

.

Durante a ocupação da reitoria em maio/2007, pude matar as saudades daqueles tempos
em que ia tanto e tão esperançoso à USP. como aprendiz da revolução (vide aqui
 

Dizia que não aguentava mais ouvir falarem o dia inteiro sobre assuntos bélicos, queria outros papos.
Saímos. Eu para estruturar nosso serviço de Inteligência no RJ, como já o fizera em SP. Ele, para viver como civil, embora a passagem pela VPR o tivesse queimado muito: a repressão concluíra erroneamente que era ele o 

japonês da metralhadora dos assaltos a banco da VPR e o tornara um dos 

terroristas assassinos procurados que apareciam em cartazes por todos os lugares.  

Embora responsável por ele estar sendo caçado no Brasil inteiro, a Organização nada fez pelo Massa: não providenciou sua fuga para o exterior e nem mesmo deu uma graninha para ele se manter durante alguns meses. Nada.
Então, vivendo precariamente havia quase meio ano (participou de colheitas no interior, dormiu como mendigo em barracas do mercado municipal), estava chegando ao limite.

Persio Arida tripudiou sobre tragédia do
Massafumi no afã de autopromover-se

Foi quando viu cinco velhos amigos se 

arrependendo, inclusive o guru dele, o Marcos Vinícius Fernandes dos Santos.
Procurou a irmã do Marcos, que lhe serviu de pombo correio para fazer chegar um pedido de conselho ao prisioneiro; recebeu, de volta, a sugestão de entregar-se ao Dops. 
Para dourar a pílula, o Marcos ainda orientou a irmã a dizer que, com isto, o Massa agilizaria a libertação dos cinco.
Ele, então, sentiu-se desculpado para ceder. Viu-se fazendo uma ação nobre, à maneira dos antigos samurais (assim ele se justificou depois para o tio Akitoshi).
Apareceu na tevê e comoveu o Brasil, sendo elogiado até pelo ditador Médici. 
Mas, libertado pouco depois, não reencontrou nenhum calor humano. Ficou estigmatizado pelos simpatizantes da esquerda e visto como 

encrenca pelos cidadãos comuns (poderia ser alvo de atentados e eles temiam pegar as sobras). 
Foi enlouquecendo: ia para o litoral acreditando que, por estar no nível do mar, suas ondas mentais não seriam captadas pelas unidades da repressão na cidade de São Paulo.
Tentou duas vezes o suicídio e a família o salvou. Na terceira, o irmão que deveria cuidar dele, vendo-o em pleno sono, acreditou que nada de mal aconteceria se corresse ao banco para pagar uma conta. Ao voltar, encontrou-o enforcado. Pendurara-se no chuveiro.

Nem preciso dizer como o fato de ele ter passado os últimos anos nesse inferno me abalou. Senti-me culpado por não o haver procurado quando recuperei a liberdade, mas nem sequer sabia como chegar até ele; ademais, me reconstruía a duras penas, após ter sido quase aniquilado.
Como acontece com os que rodeavam suicidas, as autojustificativas nunca me convenceram totalmente.

“quando só havia injustiça e não havia revolta”

Consolou-me um pouco a oportunidade que tive de lutar por sua memória, inclusive quando ele foi alvo de uma agressão covarde e repulsiva do Pérsio Arida (videaqui)
Que mais poderia dizer agora? Não sei. Eu tive outra vida depois daquela, ele não. Restaram-me apenas a pena e o pesar.

Melhor socorrer-me com o Brecht:

“Vós, que vireis na crista da onda em que nos afogamos, ao criticardes nossas fraquezas, pensai também nos tempos sombrios de que haveis escapado. Íamos através da luta de classes, desesperados, trocando mais de países que de sapatos, quando só havia injustiça e não havia revolta”.

O que se poderia cobrar de Massafumi, ele pagou mil vezes, mediante tudo que sofreu e a forma horrível como morreu.

Já os bárbaros que destruíram por 21 anos o Brasil que ele tanto amou e os intolerantes que dele exigiram muito mais do que poderia dar, esses conservaram um enorme débito acumulado para com ele e as demais vítimas de sua desumanidade. 

A maior parte dos ditos cujos levou tal débito para o túmulo… (por Celso Lungaretti)   

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