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Ana Livia Esteves
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Grandes potências como Rússia, EUA e China apostam nas suas culturas estratégicas para se guiar durante períodos de turbulência internacional. Mas o que países que não possuem tradição estratégica podem fazer para sobreviver à transição geopolítica? Especialistas russos respondem.
A cultura estratégica de grandes potências, como Rússia, EUA e China, determina em grande parte como esses países reagem a eventos internacionais de relevância, como a eclosão de conflitos militares ou rupturas na ordem mundial.
No atual contexto geopolítico, potências são demandadas a tomar decisões rápidas, com consequências imprevisíveis.
Nesta semana, por exemplo, estrategistas em Washington foram levados a desenhar uma resposta ao ataque em sua base militar na fronteira entre a Jordânia e a Síria, que vitimou pelo menos três norte-americanos. E isso poucas semanas após elaborar uma operação militar no mar Vermelho para conter o grupo iemenita houthi.
Formulada sobretudo por militares, diplomatas e até membros dos serviços de inteligência, a cultura estratégica é passada de geração em geração por instituições consolidadas, como as Forças Armadas ou o Ministério das Relações Exteriores.
“Potências militares normalmente têm culturas estratégicas sólidas, que são ditadas sobretudo pela experiência histórica do país e sua posição geográfica”, disse o pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisa em Economia Mundial e Relações E. M. Primakov, Aleksei Krivopalov, durante evento dedicado ao tema realizado em Moscou.
Ter uma cultura estratégica consolidada auxilia os países a tomarem decisões em momentos críticos. Além disso, conhecer a cultura estratégica de um adversário pode ajudar a prever a sua resposta a desafios internacionais.
“No caso dos EUA, a sua cultura estratégica é determinada pelo fato de o país ser uma verdadeira ilha continental, que não está sujeita a ameaças externas terrestres”, explicou Krivopalov. “É uma potência naval desde sua origem, […] com forte sentido messiânico, acostumada a controlar os seus adversários à distância.”
A sensação de ausência de vulnerabilidades é uma constante na cultura estratégica dos EUA, disseram os especialistas. Durante sua história, os EUA tampouco experimentaram momentos nos quais ficaram para trás em áreas importantes, como o desenvolvimento científico e tecnológico.
Integrantes das Forças Armadas dos EUA arrumando a bandeira norte-americana
© Foto / Departamento de Defesa dos EUA / Jason Minto
“É uma elite que não sabe o que é estar atrasada ou ficar pra trás”, diagnosticou Krivopalov. “Já a Rússia, em função da sua experiência traumática nos anos 90, por exemplo, conhece esse sentimento.”
Estas características da cultura estratégica dos EUA explicam, por exemplo, porque o país reagiu de forma tão histriônica a acontecimentos como o surgimento de mísseis soviéticos na ilha de Cuba, em meados do século XX.
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30 de agosto 2023, 12:17
“Sentir essa vulnerabilidade fez com que eles reagissem de maneira muito mais ácida do que outros países os fariam em situação similar”, considerou o especialista russo.
Outros eventos de choque para a cultura estratégica dos EUA foram os ataques de Pearl Harbour e os ataques às Torres Gêmeas em Nova York em 11 de setembro de 2001, elencou o americanista Poxor Tebin, pesquisador do Centro de Estudos Integrados Internacionais e Europeus da Escola Superior de Economia de Moscou.
Presidente Bush na Sala Oval da Casa Branca em Washington em 11 de setembro de 2001, enquanto se dirige à nação sobre os ataques terroristas no World Trade Center e no Pentágono
© AP Photo / Doug Mills
Para os especialistas, no entanto, nem todos os países possuem cultura estratégica consolidada. Enquanto alguns não desenvolveram instituições consolidadas o suficiente, outros simplesmente não possuem ameaças externas que demandem pensamento estratégico.
“Uma grande potência é aquele país que na arena internacional anuncia demandas e ambições que estão além da esfera de sua segurança direta”, disse Krivopalov à Sputnik Brasil. “Os países que se portam dessa forma são poucos e entre eles há forte concorrência.”
O atual período de transição geopolítica, rumo à formação de um mundo multipolar, pode fornecer uma oportunidade para que potências regionais, como Brasil e África do Sul, consolidem uma cultura estratégica sólida.
“Períodos turbulentos podem justamente oferecer uma oportunidade para que o líder de um país, ou a sua elite, fortaleçam as suas Forças Armadas e demais instituições”, disse Krivopalov à Sputnik Brasil. “Agora, se essas instituições serão capazes de formar uma tradição e uma cultura, teremos que esperar pra ver, afinal nem sempre esse é o caso.”
Membros das Forças Armadas Brasileiras participam de exercício militar no âmbito da operação Agata, em Oiapoque, Amapá, Brasil, 31 de outubro de 2020
© AFP 2023 / Nelson Almeida
De fato, a cultura estratégica é um ativo que um país pode desenvolver ao longo de sua história, da mesma forma que a pode perder, caso não mantenha suas instituições funcionando a contento.
“Um país como o Irã, que não tinha cultura estratégica, hoje tem. Por outro lado, o Japão, que era um país com forte cultura estratégica, hoje em dia a perdeu”, disse Krivopalov. “Também podemos questionar se a Alemanha e a França [pós-Segunda Guerra Mundial] ainda possuem uma cultura estratégica.”
Especialistas russos reunidos em evento sobre cultura estratégica realizado pelo Instituto Rússia na Política Global, em Moscou, 31 de fevereiro de 2024
© Foto / Ana Livia Esteves
Para ele, um país só terá cultura estratégica se possuir independência para “decidir o que quer fazer, sem a autorização de um hegemon”. Neste sentido, “um país como a Turquia atualmente tem muito mais abertura para desenvolver uma cultura estratégica do que a França e a Alemanha”.
Tropas norte-americanas passam através Alemanha para Leste Europeu
© AP Photo / Ingo Wagner
Neste contexto, países do Sul Global poderão ampliar a cooperação com potências militares tradicionais como a Rússia para formular seu arcabouço estratégico.
“A Rússia tem muito potencial para essa cooperação, graças justamente a nossa cultura estratégica”, disse o pesquisador do centro de segurança internacional do Instituto Nacional de Pesquisa em Economia Mundial e Relações E. M. Primakov, Dmitry Stefanovich, à Sputnik Brasil.
Moscou tem experiência secular de contatos com o Sul Global e participou ativamente da luta anticolonial durante o período soviético, lembra o especialista. Segundo ele, a comunidade estratégica russa está pronta para expandir a cooperação.
“Pelo que podemos ver pelos discursos de autoridades e da elite, os países do Sul Global também são a favor de mais interação”, disse Stefanovich. “E isso não é só pelo potencial que a Rússia tem, mas também porque muitas ações que o Ocidente está adotando em seu conflito com a Rússia estão tendo repercussões abrangentes para o Sul Global.”
Lula, Xi Jinping, Cyril Ramaphosa, Narendra Modi, e Sergei Lavrov posam para uma foto do grupo BRICS durante a Cúpula do BRICS de 2023, no Centro de Convenções de Sandton em Joanesburgo. África do Sul, 23 de agosto de 2023
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A mais recente concepção de política externa da Rússia, documento estratégico por excelência, determina que Moscou amplie sua presença no Sul Global e cita o Brasil como um dos países prioritários. A concepção foi reformulada e aprovada pelo presidente do país, Vladimir Putin, em março de 2023.
Nesta quarta-feira (31), o Instituto Rússia na Política Global realizou o debate “Cultura Estratégica: destino, guia ou álibi?”, mediado pelo membro do Conselho de Política Externa e de Defesa da Rússia, Fyodor Lukianov, em Moscou.