Olá, tudo bem?
Rafael Oliveira
Repórter da Agência Pública
Eu me lembro da primeira vez que vi um dispositivo parecido com um pen drive espalhando fumaça com cheiro doce em uma roda de amigos. Era o final de 2021 e as duas doses de vacina contra a covid-19 permitiam que esses encontros finalmente voltassem a acontecer. Eu mesmo, confesso, quis provar a novidade pela primeira – e última – vez.
Desde então, nunca mais frequentei um evento entre amigos que não tivesse pelo menos um cigarro eletrônico na mão de alguém, mesmo em locais fechados.
Quando eu soube que a Pública tinha sido convidada para participar de uma investigação transnacional sobre o tema, não tive nenhuma dúvida de que o lobby das gigantes do tabaco seria o centro da apuração.
A primeira lembrança que me veio foi de como o tema é retratado na brilhante série Mad Men, que acompanha a vida de um publicitário na Nova Iorque dos anos 1960. Na série, um dos principais clientes da agência onde Don Draper trabalha é a marca de cigarros Lucky Strike, que à época andava às avessas com as autoridades de saúde. Por décadas, como é sabido, a indústria tabagista negou os malefícios de seu produto. Na ficção, Draper dribla os fatos criando o slogan “It’s toasted” (é tostado, em tradução livre), que não nega, mas também não deixa claro os estragos do tabaco.
Dizem que a história sempre se repete…
No Brasil, a comercialização dos dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs), nome rebuscado que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) adota para falar dos vapes, é proibida pela própria autarquia desde 2009, em um processo que está sendo atualmente revisado.
Só que a proibição não tem impedido o consumo dos vapes, pods e demais variáveis dos cigarros eletrônicos por aqui — as baladas brasileiras não me deixam mentir. O maior público consumidor deles é justamente aquele que as grandes empresas tabagistas precisam conquistar caso queiram evitar o fim de seu ramo de negócio: os jovens não fumantes de cigarros tradicionais.
A Philip Morris, fabricante do Marlboro, por exemplo, colocou em seu plano estratégico a meta de ter seus “produtos sem fumaça” legalizados em ao menos 100 países até 2025. Já a British American Tobacco (BAT) quer mais do que dobrar o número de usuários dos seus “produtos não combustíveis”, chegando a 50 milhões de pessoas até 2030.
Parte da estratégia para atingir as ousadas metas, claro, envolve expandir sua popularidade em uma das maiores populações do mundo, o Brasil.
Por aqui, as gigantes da nicotina publicaram “conteúdos de marca” em pelo menos 10 grandes veículos de imprensa, sempre ancoradas no “direito de escolha do consumidor” e em pesquisas que supostamente mostram que os cigarros eletrônicos são muito mais seguros do que os cigarros convencionais – o que está longe de ser um consenso científico.
As empresas também têm mirado sua artilharia na própria Anvisa, que está com uma consulta pública aberta sobre o tema. Para tentar mudar o entendimento da agência reguladora sobre os vapes, a indústria tem batido ponto em Brasília, com reuniões frequentes com os diretores da autarquia. Uma das estratégias, por exemplo, foi a contratação de uma ex-diretora da Anvisa como consultora científica da BAT Brasil. É a porta giratória funcionando a todo vapor.
Caso a Anvisa mantenha a proibição, as gigantes do tabaco já têm um plano B (que pode se transformar em plano A a qualquer momento): no ano passado, a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) apresentou um projeto de lei para legalizar a comercialização dos vapes em terra brasilis. O projeto conta com o entusiasmo da indústria e o apoio da bancada do fumo, que abraçou a causa dos cigarros eletrônicos.
A Philip Morris chegou a dizer em resposta à Pública que a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo) participou da formulação do projeto de lei. Depois da publicação da nossa série de reportagens, a empresa voltou atrás e retificou a nota, dizendo que a associação apenas participou da audiência pública promovida por Thronicke.
A colaboração transnacional da qual fizemos parte revela ainda que as tabagistas estão indireta e secretamente por trás de várias das supostas “organizações de consumidores” que defendem a legalização dos vapes na América Latina. É o bom e velho astroturfing, em que o incentivo financeiro para a promoção de certos temas é omitido, de modo a parecer que a discussão partiu da própria sociedade civil.
Dizem que a história sempre se repete, primeiro como farsa, depois como tragédia.
Não sei se é esse o caso do lobby da indústria do tabaco com os cigarros eletrônicos, mas posso afirmar com convivição