O grupo J&F aproveitou a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli, que anulou as provas entregues pela Odebrecht à Lava Jato, para pedir a ele a suspensão e um desconto na multa de R$ 10,3 bilhões acertada em seu acordo de leniência com o Ministério Público Federal (MPF).
Embora os acordos das duas holdings tenham sido negociados em processos separados, a J&F quer usar a pecha de perseguição e parcialidade colocada por políticos sobre a Lava Jato para obter maior benefício financeiro, além daquele acordado inicialmente com o MPF.
Há meses o grupo tenta um desconto no montante, para pagar R$ 3,5 bilhões, um terço da multa. No pedido entregue a Toffoli, a J&F argumentou que, assim como alega a empreiteira, o grupo teria sido pressionado de forma abusiva pelo MPF, aceitando pagar um valor exorbitante e fixado sem critério razoável, para continuar funcionando.
Há anos, os irmãos Joesley e Wesley Batista, principais controladores do grupo, também tentam no STF repactuar seus acordos de delação premiada, no qual confessaram diversos atos de corrupção no poder público, para também reduzir a dívida acertada. Esse pedido tramita com o ministro Edson Fachin no STF. O novo pedido da J&F, no entanto, foi direcionado a Toffoli, que se tornou relator do processo em que foram anuladas as provas da Odebrecht.
Embora os casos de corrupção da J&F não tenham relação direta com os da Odebrecht, a J&F acionou Toffoli a partir de uma manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR), órgão de cúpula do MPF, que opinou pelo envio do caso ao ministro. Essa manifestação foi feita dentro de uma ação do deputado Rui Falcão, do PT-SP, na qual acusava os procuradores que negociaram o acordo de leniência de diversas irregularidades, em prejuízo da J&F e supostamente para favorecer a ONG Transparência Internacional no Brasil.
O acordo de leniência previa que, dos R$ 10,3 bilhões de multa, R$ 2,3 bi deveriam ser aplicados em projetos sociais sob supervisão da Transparência Internacional. Para Rui Falcão, a gestão dos recursos por uma entidade privada é irregular. Com base nisso, ainda em 2020, o então procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu que os recursos fossem destinados à União, de modo que o poder público definisse onde seria investido.
A Transparência Internacional disse, em nota, que “jamais participou na negociação de qualquer acordo de leniência assinado pelo Ministério Público Federal ou qualquer outra autoridade brasileira” e que “jamais pleiteou qualquer recurso de qualquer acordo de leniência assinado por empresas brasileiras e jamais pleiteou qualquer papel gestor de tais recursos”.
“É extremamente grave que a holding J&F, que se comprometeu com autoridades judiciais no Brasil e nos Estados Unidos a interromper suas condutas criminosas e adotar elevados padrões éticos, submeta ao Supremo Tribunal Federal informações falsas, para formular acusações levianas contra agentes públicos e organização da sociedade civil”, diz a ONG.
J&F quer acesso às mensagens da “Vaza Jato”
Para reforçar o pedido, a J&F ainda solicitou a Toffoli todas as mensagens trocadas por procuradores captadas ilegalmente por hackers e que também foram usadas pelo ministro para anular as provas da Odebrecht. Para ele, parte das provas teriam sido obtida de maneira informal, supostamente irregular, junto a autoridades suíças, o que comprometeria sua integridade – o principal material são cópias dos sistemas digitais, o Drousys e MyWebDay, que eram armazenados na Suíça e na Suécia e registravam pagamentos para políticos.
Como mostrou a Gazeta do Povo, a obtenção dessas provas na Suíça foi efetivada de forma legal, por intermédio do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), subordinado ao Ministério da Justiça. Além disso, perícias da Polícia Federal e da PGR atestaram a autenticidade e integridade dos dados transportados ao Brasil. O procedimento junto à Suíça foi aprovado pela Corregedoria do MPF. Os procuradores, por sua vez, argumentam que alguns contatos informais entre investigadores de diferentes países são comuns e recomendados por órgãos internacionais para facilitar a troca de informações.
A J&F afirmou no pedido a Toffoli que procuradores das duas investigações conversavam pelo celular sobre questões que “extrapolaram (muito) aspectos meramente jurídicos”. “Viu-se procuradores envolvidos em conversas sobre tais pessoas (físicas e jurídicas) com o intuito de pactuar estratégias de ação (não apenas jurídicas, mas também políticas), compartilhando informações com colegas que não detinham nenhuma competência para tomar eventuais providências legais, entre outras condutas sobremaneira questionáveis”, diz a J&F.
As mensagens interceptadas clandestinamente nunca tiveram sua integridade e autenticidade confirmadas pela PF. Elas hoje estão em poder do STF a partir da apreensão, em 2019, de computadores dos hackers onde ficavam armazenadas. A única garantia sobre elas é que não foram alteradas desde então, mas nada assegura que não tenham sido editadas antes.
Decisão de Toffoli sobre Odebrecht ainda gera dúvidas
Após a decisão de Toffoli, em setembro, a PGR recorreu ao ministro para esclarecer os efeitos da decisão, sobretudo na parte em que ele mandou responsabilizar os procuradores por suposto abuso nas investigações. A subprocuradora-geral da República Lindôra Araujo questionou o ministro se essas apurações ocorrerão perante o STF ou se poderão ser tocadas internamente, bastando informar ao ministro seus resultados. Ela também perguntou a Toffoli se as provas da Odebrecht realmente serão anuladas mesmo após o Ministério da Justiça ter confirmado que o DRCI efetivamente intermediou a cooperação da Lava Jato com a Suíça.
A Odebrecht, por sua vez, também oficiou a Toffoli defendendo a manutenção dos benefícios prometidos pelo MPF em seu acordo de leniência mesmo após a anulação das provas que entregou. O grupo afirmou que colaborou de boa-fé e que deve se manter livre de processos criminais e de improbidade contra seus executivos mesmo que as provas não prestem mais para condenar políticos que corrompeu. O grupo queixou-se que, mesmo após o acordo, vem sofrendo ações na Justiça, impedimento de ser contratada por entes públicos e restrição na tomada de empréstimos de bancos públicos, prejudicando suas atividades.
O Tribunal de Contas da União (TCU), por exemplo, já divulgou que, com a anulação das provas da Odebrecht, vai avaliar se as punições que aplicaria ao grupo e foram suspensas, serão retomadas, diante da ineficácia do material para punir e obter ressarcimento de pessoas envolvidas em desvios de recursos públicos. A Odebrecht quer garantir que não será punida.
“A sujeição do Grupo e/ou de seus Colaboradores a novas persecuções, ações de improbidade, sanções, declaração de inidoneidade e eventuais medidas cautelares de indisponibilidade de bens, além de representar gravíssima violação à segurança jurídica e profundo desestímulo à celebração de acordos de leniência e de colaboração premiada, pode causar dano irreparável e, no limite, levar a interrupção prematura e desordenada de obras contratadas, demissões, perda de arrecadação tributária e demais riscos associados”, escreveram os advogados da empresa ao ministro Dias Toffoli.
Partidos de esquerda querem rever todos os acordos de leniência de empreiteiras
Após a decisão do ministro, partidos de esquerda – PCdoB, Psol e Solidaridade – reforçaram um pedido ao STF para rever os acordos de leniência com todas as empreiteiras que admitiram atos de corrupção. Essa ação foi apresentada em março deste ano, mas tem como relator o ministro André Mendonça – antes de 2019, ele era responsável por negociar os acordos no âmbito da Advocacia-Geral da União (AGU).
“A referida decisão será um marco importante a ser considerado nestes autos, dos quais, espera-se, devem sair parâmetros objetivos referentes à revisão de outros acordos de leniência, e isso porque a decisão emitida pelo Min. Dias Toffoli é magistralmente elucidativa da relação estrutural que se instaurou de modo patológico no período da Lava Jato, mediante a qual diversos órgãos e agentes do Estado se uniram, de forma sistemática, na violação de direitos fundamentais, num autêntico Estado de Coisas Inconstitucional”, afirmaram os partidos.